Precisa planta e memorial descritivo do imóvel para fazer usucapião?
7 Jul 2024 · Tempo de leitura: 13 minuto(s)No Brasil, segundo reportagem da Folha de S. Paulo de 13 de julho de 2023 , existem mais de 40 milhões de domicílios urbanos sem escritura, e 60% dos imóveis brasileiros apresentam algum tipo de irregularidade documental.
A falta de documentação adequada gera riscos que vão desde a necessidade de investir na regularização da documentação do imóvel depois da compra , que pode não ter sido prevista no momento da compra, até a perda do imóvel, por causa de processos contra a pessoa cujo nome está na matrícula do imóvel como proprietário (o chamado proprietário tabular).
Um dos primeiros pensamentos a passar pela mente de quem percebe os problemas da falta de regularização do próprio imóvel é: usucapião.
Usucapião é uma forma de conseguir a propriedade de um bem (imóvel ou móvel, tanto faz) por ter exercido posse sobre ele durante um período previsto em lei.
(Móvel? Sim, existe usucapião de coisas móveis, como carros, roupas, jóias, livros, etc. Como escrevemos um artigo bem completo sobre o assunto , recomendamos a leitura para quem se interessou, e vamos seguir tratando só de imóveis.)
Entretanto, não são poucas as dúvidas quanto ao assunto. Temos um guia com 10 conceitos-chave para entender a usucapião , cuja leitura recomendamos antes de prosseguir.
Desta vez, vamos responder de modo simples e direto uma dúvida comum: precisa de planta e/ou memorial descritivo do imóvel para abrir a ação judicial de usucapião?
O assunto é polêmico, porque não existe posição unânime nos tribunais sobre o assunto. Além disso, a depender do tipo e tamanho do imóvel, o serviço de elaboração de planta com georreferenciamento e memorial descritivo pode encarecer bastante a usucapião, dificultando sua obtenção por pessoas de menor poder aquisitivo.
Além de discutir o assunto, apresentamos algumas alternativas.
Nossa posição sobre o assunto
Nossa posição é simples:
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Em usucapião extrajudicial, a planta é item obrigatório, porque exigida pelo inciso II do artigo 4º do Provimento CNJ 65/2017.
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Em usucapião judicial, se a ação foi aberta na Justiça até 16 de março de 2016, a planta do imóvel é obrigatória para abrir o processo.
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Por outro lado, a ação foi aberta na Justiça de 17 de março de 2016 em diante, salvo em alguns casos especiais, a planta não é mais obrigatória para começar a usucapião judicial, mas pode se tornar necessária durante o processo para provar o tamanho e os limites do imóvel.
Quais casos especiais são esses?
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Se a usucapião é de imóvel urbano e o pedido se refere a um imóvel com descrição igual à da matrícula, a planta é desnecessária, porque a matrícula já descreve o imóvel.
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Se a usucapião envolve exclusivamente imóvel rural cuja matrícula já tem georreferenciamento, ou já está inscrito com georreferenciamento no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a planta é desnecessária, porque essas duas formas de registro do georreferenciamento já descrevem o imóvel.
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Se a usucapião envolve exclusivamente imóvel rural com tamanho menor que 2,5 hectare e o pedido se refere à área descrita na matrícula, a planta precisa ser apresentada ao juiz durante o processo, mas não é obrigatória se o imóvel tiver seus limites bem descritos na matrícula e os confrontantes estiverem de acordo.
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Se o imóvel não tem matrícula, nem descrição adequada, não tem jeito: a planta precisa ser apresentada ao juiz durante o processo.
Como o assunto só tem “pontas soltas” na usucapião judicial, daqui para a frente trataremos só dela.
Por que em alguns lugares ainda se exige planta do imóvel para começar a usucapião judicial?
Por causa do que dizia o antigo Código de Processo Civil sobre o assunto: era um procedimento especial com requisitos muito específicos, entre os quais a planta do imóvel. Essa regra não existe mais.
Ação de usucapião como procedimento especial no Código de Processo Civil de 1973
O artigo 942 do Código de Processo Civil de 1973 (hoje revogado) exigia a planta para começar a usucapião judicial:
Art. 942. O autor, expondo na petição inicial o fundamento do pedido e juntando planta do imóvel, requererá a citação daquele em cujo nome estiver registrado o imóvel usucapiendo, bem como dos confinantes e, por edital, dos réus em lugar incerto e dos eventuais interessados, observado quanto ao prazo o disposto no inciso IV do art. 232. (grifo nosso)
No antigo Código de Processo Civil, a usucapião era um dos chamados procedimentos especiais, chamados assim porque não seguem as regras do procedimento comum. Isto acontecia porque, em 1973, ainda se cometia o equívoco de considerar a usucapião uma ação constitutiva de direitos, não uma ação declaratória.
Num resumo muito simplificado da questão, naquele tempo se considerava que a sentença na ação de usucapião era constitutiva, ou seja, ela criava o direito à usucapião se houvesse prova suficiente dos fatos. Com isso, não se considerava a pessoa como proprietária do imóvel antes da sentença, mas depois dela, porque seu direito à propriedade do imóvel era criado pela sentença.
Para assegurar a maior segurança possível à criação do direito à usucapião, a sentença deveria aparecer como ato final de uma ação judicial bastante complexa, que envolvia desde os órgãos federais, estaduais e municipais até o Ministério Público.
Como parte desse procedimento complexo, a planta do imóvel era considerada requisito essencial da ação.
Nenhum juiz poderia dar prosseguimento à usucapião apresentada sem planta. Era como se alguém resolvesse cobrar o pagamento de um cheque sem fundos sem apresentar o cheque devolvido, ou pedir divórcio sem apresentar a certidão de casamento.
No máximo, o juiz poderia ordenar à pessoa interessada que “consertasse” a petição inicial apresentando a planta; se não o fizesse, a usucapião era extinta sem julgamento de mérito, ou seja, sem decidir “a favor” ou “contra” porque faltou um elemento essencial.
Pela complexidade envolvida, esta ação foi destacada dos procedimentos comuns no Código de Processo Civil, que a classificou naquela época como um procedimento especial.
Ação de usucapião como procedimento comum no atual Código de Processo Civil
Acontece que estas regras não existem mais no Código de Processo Civil de 2015, nem em lugar nenhum.
O art. 1.046 do atual Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) revogou o Código de Processo Civil de 1973.
Além disso, no atual Código de Processo Civil a usucapião deixou de ser um procedimento especial. Hoje, ela é uma simples ação declaratória, um procedimento comum.
Na verdade, quem procurar por usucapião no Código de Processo Civil atual não encontrará mais nada além de algumas menções específicas nos artigos 246 e 259.
Por que isso aconteceu?
Hoje, com a evolução dos estudos mais rigorosos e sistemáticos sobre o tema, se considera que a sentença de usucapião é simplesmente declaratória, ou seja, ela declara um direito já existente quando há provas suficientes de sua existência.
Com isso, a pessoa interessada já é proprietária do imóvel antes mesmo da sentença de usucapião, que serve somente para que um juiz formalize o direito do proprietário para levar a registro no cartório de imóveis.
Se, pela regra do Código de Processo Civil de 1973, um juiz poderia rejeitar o pedido de usucapião logo de início por falta da planta, ou mandar a pessoa interessada trazer a planta ao processo para corrigir a petição inicial, agora isto não é mais possível.
Por que juízes continuam pedindo planta e memorial descritivo depois de aberta a usucapião?
Observe-se bem a diferença: juízes pedem planta e memorial descritivo depois de aberta a usucapião. Quando isso acontece, o pedido é legítimo.
Mas por quê?
Porque, a depender da documentação apresentada no início do processo, juízes entendem que não foram apresentados elementos suficientes para identificar o imóvel e distingui-lo dos imóveis vizinhos.
Juízes seguem o que dizem as leis. Têm pouca margem para “inovar”. Num processo de usucapião, entre outras regras, devem seguir o que diz o artigo 225 da Lei de Registros Públicos :
Art. 225. Os tabeliães, escrivães e juizes farão com que, nas escrituras e nos autos judiciais, as partes indiquem, com precisão, os característicos, as confrontações e as localizações dos imóveis, mencionando os nomes dos confrontantes e, ainda, quando se tratar só de terreno, se esse fica do lado par ou do lado ímpar do logradouro, em que quadra e a que distância métrica da edificação ou da esquina mais próxima, exigindo dos interessados certidão do registro imobiliário. (grifo nosso)
Na falta de provas que “indiquem, com precisão, os característicos, as confrontações e as localizações dos imóveis”, juízes não só podem como devem pedir às pessoas interessadas que apresentem planta e memorial descritivo do imóvel.
Existem documentos que podem reduzir ou até eliminar a necessidade de planta:
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Matrícula do imóvel: se o imóvel tem matrícula, se a descrição da matrícula estiver bem feita (com indicação do tamanho dos lados do imóvel, do nome dos proprietários vizinhos, da área total do imóvel, etc.), e se o imóvel reivindicado por usucapião for exatamente o mesmo que aparece na matrícula, a planta e o memorial descritivo podem ser dispensados. Se a matrícula tiver descrição georreferenciada do imóvel, a planta e o memorial descritivo se tornam inúteis, porque repetem um trabalho já realizado.
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Cadastro no SIGEF: quem tem imóvel rural sabe que o cadastro no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) exige o georreferenciamento do imóvel. Se o imóvel reivindicado já está cadastrado no SIGEF, e se a área reivindicada é igual à cadastrada, a planta e o memorial descritivo podem ser dispensados.
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Documento de propriedade com planta e/ou memorial descritivo: já tivemos a oportunidade de encontrar documentos de propriedade antigos, especialmente alguns expedidos por governos estaduais na venda de terras públicas, que continham descrição pormenorizada do imóvel, com croqui e memorial descritivo feito por engenheiros civis, agrônomos e topógrafos. A depender do estado de conservação destes documentos, eles podem suprir tranquilamente a produção de nova planta e memorial descritivo.
Em quais casos se recomenda produzir logo a planta e o memorial descritivo?
Como trabalhamos principalmente com usucapião extrajudicial , uma de nossas primeiras orientações a clientes é produzir a planta e o memorial descritivo do imóvel.
Só quando percebemos a necessidade de usar o “último recurso” (como chamamos a usucapião judicial ) pensamos duas vezes antes de pedir a produção de planta e memorial descritivo. Mesmo assim, nossa orientação continua sendo fazê-los.
Além da usucapião extrajudicial, que exige planta e memorial descritivo logo na abertura, nossa recomendação de produzir a planta e o memorial descritivo se justifica por outros fatos, mesmo em usucapião judicial:
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Disputas quanto aos limites do imóvel: se há disputa, é preciso haver prova técnica isenta, capaz de indicar com precisão onde ficam os limites do imóvel, e qual seu real tamanho.
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Ausência de matrícula: se o imóvel não tem matrícula em cartório de imóveis, é necessário descrevê-lo e individualizá-lo para criar nova matrícula ao final da usucapião.
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Imóvel com matrícula defeituosa: se há problemas na matrícula do imóvel, especialmente quando falta descrição precisa dos limites e tamanho do imóvel, é preciso produzir a planta e o memorial descritivo para retificar a matrícula ao final da usucapião.
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Confusão de propriedades: se na usucapião aparece alguma situação envolvendo confusão de propriedades (ou seja, onde não se consegue dizer exatamente se o imóvel é o mesmo da matrícula, ou onde estão os limites frente a vizinhos, etc.), a planta é prova técnica absolutamente necessária.
Sai caro fazer a planta e o memorial descritivo! Não tem outro jeito?
De fato, o serviço pode ser bastante caro, especialmente quando se trata de imóvel rural. Em valores de mercado, o preço da planta e do memorial descritivo pode até inviabilizar a usucapião.
Que fazer, então?
Existem algumas soluções que sempre apresentamos:
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Procure uma assistência técnica gratuita: em 2008 foi publicada a Lei 11.888/2008 , que assegura o direito das famílias de baixa renda à assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social, e também para a regularização fundiária. Com certeza deve existir alguma assistência técnica gratuita de arquitetos ou engenheiros em seu município. Geralmente essas assistências técnicas ficam no prédio da Prefeitura. Vale a pena procurá-las.
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Procure a prefeitura: a depender de como funcione a prefeitura do seu município, pode ser que exista um órgão especializado em urbanismo, meio ambiente, planejamento ou obras públicas que tenha engenheiros ou arquitetos pagos pela própria prefeitura só para fazer plantas, projetos e levantamento cadastral. Procure a prefeitura, e veja se existe algum serviço como esse.
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Procure uma faculdade, universidade ou escola técnica: nos cursos de Engenharia Civil, Arquitetura, Urbanismo, Agronomia, Topografia, Agrimensura e similares é comum existir algum serviço gratuito ou de baixo preço onde estudantes, sob a supervisão de professores ou outros profissionais, são treinados em suas futuras profissões metendo a mão na massa com atividades práticas. Um exemplo é a PROJECTA -- Empresa Júnior de Arquitetura da UFBA . Procure uma faculdade, universidade ou escola técnica com algum desses cursos, e cheque se existe algum serviço gratuito que faça o levantamento cadastral e produza a planta e o memorial descritivo.
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Procure a defensoria pública: defensorias públicas são órgãos especializados em atender pessoas de menor renda que precisam abrir processos na Justiça. Em alguns Estados, defensorias públicas têm núcleos especializados em regularização de imóveis, com arquitetos e engenheiros dedicados ao levantamento cadastral para produção de planta e memorial descritivo. Procure o escritório da defensoria pública de sua cidade, e veja se oferecem este serviço. Se não oferecerem, os próprios defensores poderão abrir a usucapião na Justiça e tentar pedir perícia gratuita ao juiz.
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Caso especial: negocie gratuidade, desconto ou parcelamento com o profissional: se nenhuma das alternativas anteriores funcionou, não há outro jeito além de negociar bastante com algum profissional de sua confiança. Mostre suas atuais condições financeiras, converse bastante, tente conseguir uma gratuidade (serviço pro bono). Se nada disso der certo, tente algum desconto, ou proponha um parcelamento com parcelas que caibam no seu bolso.
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Caso extraordinário: proponha pagamento após a venda: se o imóvel está sendo regularizado para venda, especialmente numa usucapião extrajudicial, proponha ao profissional pagar o imóvel com parte do dinheiro da venda. Para dar maior segurança ao profissional, procure seu advogado e peça que redija um contrato de prestação de serviço “amarrando” o pagamento pelo serviço à venda do imóvel, que também assegure ao profissional receber seu pagamento em parcelas se a venda não for realizada dentro de – digamos – 180 dias a contar da assinatura.
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Último recurso: pedir perícia gratuita ao juiz: se nada disso funcionou, uma solução desesperada pode ser abrir a usucapição na Justiça, comprovar a hipossuficiência com muitos documentos (contracheques, extratos bancários, etc.), pedir o benefício da assistência judiciária gratuita e, se deferido este benefício, pedir ao juiz a realização de perícia judicial do imóvel, que faça o levantamento cadastral e produza a planta e o memorial descritivo. Esta é uma solução de último recurso, viável somente quando é possível comprovar a hipossuficiência sem sombra de dúvidas. Hipossuficiência é a situação de quem não tem dinheiro para bancar os custos do processo sem prejudicar seu sustento, ou o de sua família. Adiantamos que juízes não costumam ver esta solução com bons olhos, e não autorizam esta perícia judicial se não ficar comprovada, acima de qualquer dúvida, a hipossuficiência de quem a pede.
Conclusão
A exigência da planta do imóvel para a abertura da ação judicial de usucapião foi revogada com a entrada em vigor do atual Código de Processo Civil, que não inclui esta exigência específica.
No entanto, a planta do imóvel continua a ser uma prova importante em diversas situações específicas, ajudando a demonstrar a posse, evitar conflitos e esclarecer confrontações.
Embora não seja mais um requisito obrigatório, a planta pode ser um elemento valioso para fortalecer o processo de usucapião e facilitar a decisão judicial.
Seu alto preço não justifica descartá-la, exceto em situações muito específicas.
A análise da documentação da posse do imóvel antes da usucapião, feita por advogado especializado, indicará a necessidade da planta e memorial descritivo, ou meios para substituí-la.