Usucapião de coisa móvel: o que é, para que serve, como pedir
14 Aug 2023 · Tempo de leitura: 11 minuto(s)Sabe aquele livro que você emprestou e nunca mais pegou de volta? Ou aquela ferramenta que ficou emprestada na casa de um parente?
Pois é, tome cuidado para não perdê-los de uma vez. Nem todo mundo sabe, mas também se pode adquirir a propriedade de bens móveis por usucapião.
Existe usucapião de bem móvel?
Sim! Quando se fala em usucapião geralmente se pensa em imóveis, mas também é possível adquirir bens móveis por usucapião.
É o que dizem os arts. 1.260 a 1.262 do Código Civil :
Art. 1.260. Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade.
Art. 1.261. Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé.
Art. 1.262. Aplica-se à usucapião das coisas móveis o disposto nos arts. 1.243 e 1.244 .
Portanto, sim, existe usucapião de bens móveis.
Quais bens móveis podem ser adquiridos por usucapião?
Qualquer um! Mesmo quando há formalidades previstas em lei, é possível adquirir todo tipo de bem móvel por usucapião.
Demos o exemplo de livros e ferramentas, mas bem móvel é algo bem mais amplo. No Código Civil, a definição de bem móvel no art. 82 é bem elástica:
Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.
Art. 83. Consideram-se móveis para os efeitos legais:
I - as energias que tenham valor econômico; II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes; III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações.
Pela definição do Código Civil, eis o que pode ser considerado “bem móvel”:
- Livros;
- Roupas, adereços e outros bens de uso pessoal;
- Chaves de fenda, serrotes, chaves de boca, lixas, limas, formões e outras ferramentas;
- Furadeiras, brocas, serras tico-tico e outras ferramentas motorizadas;
- Geladeiras, freezers, aspiradores de pó, batedeiras e outros eletrodomésticos;
- Computadores, laptops, impressoras e outros equipamentos de informática;
- Bicicletas, patins, patinetes, skates e outros veículos de propulsão humana;
- Qualquer animal de carga, montaria ou abate;
- Carros, caminhões, motos e outros veículos automotores;
- Tratores, escavadeiras, retroescavadeiras, guinchos e outras máquinas autopropulsadas;
- Colares, pingentes, brincos, anéis e outras joias…
A lista poderia prosseguir indefinidamente.
Como funciona a usucapião de bem móvel?
A regra é: passou o prazo legal estando na posse de uma coisa móvel sem interrupção nem contestação, é dono. Há exceções, mas esta é a regra geral.
O prazo “normal” é de três anos, se for possível provar justo título e boa fé.
Por outro lado, existe uma forma extraordinária de usucapião de bem móvel que “limpa” todos os problemas da posse: basta que se passem cinco anos de posse, sem interrupções nem contestações.
Estas afirmações pedem alguns esclarecimentos.
Posse
Primeiro, é preciso entender o que é posse.
Ela é um estado de fato. Quem segura um livro está na posse do livro; quando o solta, perdeu a posse do livro. Quem tem um computador em sua casa está na posse dele; quando o deixa na casa de alguém, não está mais na posse dele. (Não vamos distinguir posse direta e posse indireta para não complicar o artigo.)
Em termos jurídicos, posse é o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade, que são usar, gozar (também conhecido como fruir), dispor e reaver.
- Usar: o nome já explica tudo.
- Gozar ou fruir: é receber os “frutos” do aproveitamento econômico da coisa (p. ex., receber o dinheiro do aluguel de um trator, de um vestido de festa, etc.).
- Dispor: é fazer com ela tudo o que as leis permitem (p. ex., vender, alugar, emprestar, etc.).
- Reaver: é retomar a coisa de quem esteja com ela irregularmente.
Quem exerce algum desses poderes sobre uma coisa de modo contínuo e sem contestações está a um passo de ser dono, desde que passe o prazo legal e atenda a algumas condições.
Avaliando a posse: justo título e boa fé
Uma condição necessária para a usucapião é que a posse tenha sido conseguida por justo título, e de boa fé.
Diz o Código Civil :
Art. 1.200. É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.
Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa
Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.
Se não entendeu, as questões a seguir ajudam a avaliar se posse é justa ou de boa fé:
- A coisa foi tomada de alguém na marra, com violência, ou foi conseguida de modo pacífico? Se foi na marra, a posse não é justa.
- A coisa foi conseguida e vem sendo usada de modo público, ou foi tudo escondido? Se foi escondido, a posse não é justa.
- A coisa foi conseguida por meio de crime? Se foi, a posse não é justa.
- A coisa foi emprestada, ou não? Se foi emprestada, a posse não é justa.
- Ao conseguir a coisa de alguém, ela já estava “manchada” por algum desses problemas? Se já estava “manchada” e quem a recebeu sabia dos problemas, a posse não é de boa fé.
- Existia algum obstáculo para conseguir a coisa? P. ex., quem entregou a coisa não era dono? Se havia obstáculos, e quem a recebeu os conhecia, a posse não é de boa fé.
Se ficou provado que a posse sobre um bem é justa e de boa fé, é possível, sim, usá-la para conseguir a propriedade de bem móvel por usucapião. Mas ainda há outros critérios a analisar.
Avaliando a posse: posse contínua e incontestada
A próxima condição necessária para a usucapião de bem móvel é avaliar se a posse foi exercida de forma contínua e incontestada.
Posse contínua
Contínua é a posse que não foi interrompida. Seria muito complexo para este artigo explicar detalhadamente todas as causas que impedem, suspendem ou interrompem a contagem deste prazo; basta clicar nos links para abrir os artigos do Código Civil que tratam do assunto, sem esquecer do seguinte:
- Prescrição, como explicamos mais detalhadamente em outro artigo , é a perda da efetividade de um direito por causa do tempo que se demorou para exercê-lo; na usucapião, o proprietário tem o direito de pedir a coisa de volta, mas se não o exerce depois de certo prazo, não pode mais exercê-lo, e a propriedade passa a ser de quem está na posse da coisa.
- No vocabulário do Direito, suspensão de prazo é como “pausar o cronômetro”: a contagem do prazo começa, para, e depois é retomada de onde parou.
- No vocabulário do Direito, interrupção de prazo é como “zerar o cronômetro”: a contagem de tempo começa, para, e volta ao zero antes de ser iniciada novamente.
Para verificar se a posse é contínua, o que se deve fazer é olhar para a história da posse da coisa, e checar se alguma das hipóteses de impedimento, suspensão ou interrupção da prescrição aconteceu. Se impediu, a contagem do tempo de usucapião nem começa; se suspendeu, a contagem para e depois retoma de onde estava; se interrompeu, a contagem para e começa do zero.
Posse incontestada
Incontestada é a posse que ninguém contestou. Contestar, aqui, tem o sentido bem específico de desforço possessório ou contestação judicial.
Contestação “de boca”, neste caso, é o mesmo que nada. Não adianta simplesmente apontar para a coisa e dizer que “é minha”; ou adota medidas para (re)tomá-la, evidenciando assim que existe conflito e contestação em torno do bem, ou nada feito.
Desforço possessório
A primeira forma de contestação é o desforço possessório, uma das pouquíssimas possibilidades de “fazer justiça com as próprias mãos” permitidas pelo Direito brasileiro.
Desforço possessório é o nome técnico para o uso da força. Em resumo: defender a posse do bem na marra. Não é difícil de entender: se alguém tenta tomar a coisa, usa-se a força para se defender. Puxar de volta, empurrar, bater, pegar de volta…
Mas há limites, estabelecidos pelo Código Civil:
Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.
§1º. O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.
Trocando em miúdos:
- Só se pode usar a força para defender a posse na mesma hora. Não adianta tentar resolver a situação “na marra” muito tempo depois, porque já se perde a razão.
- Ao usar a força para defender a posse, não se pode ir além do indispensável. Se a ameaça à posse acabou, o uso da força deve parar imediatamente.
O desforço possessório interrompe a contagem de prazo para usucapião de coisa móvel, porque é uma forma de contestar a posse.
Contestação judicial
A segunda forma de contestação é a judicial, que pode se dar de várias formas:
- Ações possessórias, como reintegração de posse, manutenção de posse ou interdito proibitório, pela qual a posse é contestada por diversos motivos;
- Ações reivindicatórias ou petitórias, pela qual o proprietário registral exige receber de volta a propriedade do bem;
- Algumas espécies de ônus reais, como hipoteca, penhora, alienação fiduciária e outros capazes de fazer a propriedade passar para outra pessoa sob certas condições;
- Outras ações judiciais envolvendo a posse do bem, como busca e apreensão, demarcatória, inventário, inquéritos e processos criminais, etc.
Boletins de ocorrência (BO) ou termos circunstanciados (TC) são provas fracas de contestação, pois qualquer um pode ir a uma delegacia e dizer qualquer coisa. Sim, quem vai a uma delegacia com uma acusação mentirosa termina sendo acusado de comunicação falsa de crime ou de contravenção (Código Penal, art. 340) ou de denunciação caluniosa (Código Penal, art. 339); infelizmente, a comunicação falsa é crime de menor potencial ofensivo (pena de 1 a 6 meses), e a denunciação caluniosa não está entre as preocupações mais urgentes da Polícia Civil e do Ministério Público, especialmente quando delegados e agentes de polícia não levam a investigação adiante. Com isso, infelizmente não faltam exemplos de BO ou TC com acusações falsas, criados somente para produzir prova instável. Tanto um quanto o outro são provas muito frágeis de contestação.
Já com um inquérito policial a situação é diferente, porque sua abertura é sinal forte de que há indícios de crime na posse. Mesmo enquanto o inquérito estiver em andamento, ele é uma forma muito forte de contestação à posse, pois é o próprio Estado quem indica possíveis ilegalidades; se o relatório do inquérito apontar que a posse do bem foi obtida por meio ilegal, mais forte ainda se torna a contestação.
A contestação judicial interrompe a contagem de prazo da usucapião, que só pode recomeçar no dia do último ato do processo judicial ou do inquérito policial.
Como reivindico a propriedade por usucapião?
Basta começar perguntando: vale a pena ir à Justiça pedir a um juiz que declare adquirida a propriedade de um bem móvel por usucapião?
Não é pergunta que se faz só por perguntar. Ela tem efeitos práticos.
Apesar de a regra geral continuar valendo — passou o prazo e atendeu aos requisitos, é dono — existem situações onde é preciso haver uma declaração formal capaz de obrigar outros sujeitos a respeitar a aquisição da propriedade por usucapião.
Alguns exemplos:
- Jóias de alto valor;
- Obras de arte de alto valor;
- Automóveis, tratores e similares.
Isto acontece porque há situações em que, sem esta declaração formal, os outros sujeitos não se sentem obrigados a respeitar a aquisição da propriedade.
Um exemplo bem conhecido: usucapião de veículos financiados
Um exemplo clássico: usucapião de veículos financiados. Existe uma situação muito específica em que a usucapião pode ser usada para se defender quando um banco ou qualquer empresa que tenha financiado o veículo quer tomá-lo por atraso nas parcelas.
A situação, aliás, é mais comum do que se imagina.
Tudo começa com o atraso de parcelas. O banco fez a cobrança judicial, reivindicou o automóvel de volta, o juiz aceitou a cobrança e mandou tomar o veículo de volta.
Na situação de que estamos falando, o banco tem uma sentença que lhe dá o direito de tomar o carro de volta, mas nunca tomou o veículo depois de ganhar a causa. Por algum erro do banco, o tempo foi passando, o carro nunca foi tomado pelo banco, e passaram-se cinco anos depois da sentença.
Neste caso, existe uma decisão judicial dando o imóvel ao banco, que deve ser respeitada. Entretanto, passaram-se cinco anos desde o trânsito em julgado da sentença (ou seja, desde o dia em que se tornou impossível reverter a decisão com recursos) sem que o banco tenha tomado o veículo, que continua sendo usado por seu proprietário.
Enquanto a situação não for revertida por uma sentença judicial que reconheça a aquisição do carro por usucapião, ele continuará com a alienação fiduciária gravada, não poderá ser vendido (ao menos não com as formalidades legais), e ainda será considerado de propriedade do banco.
Já com a sentença de usucapião, neste caso, o proprietário poderá retirar a alienação fiduciária do registro do veículo e vendê-lo.
Conclusão
Em conclusão, a análise do instituto da usucapião de bens móveis revela-se de extrema importância no contexto jurídico contemporâneo.
Através desse mecanismo, indivíduos podem adquirir a propriedade de bens móveis de maneira legítima, desde que preencham os requisitos estabelecidos pela legislação vigente.
No entanto, é fundamental salientar que a busca pela orientação de profissionais qualificados no âmbito do direito é essencial para garantir um processo de usucapião de bens móveis livre de complicações e embates legais.