Guia rápido: 10 conceitos-chave para entender a usucapião de imóveis no Direito brasileiro
28 Nov 2023 · Tempo de leitura: 22 minuto(s)No Brasil, segundo reportagem da Folha de S. Paulo de 13 de julho de 2023 , existem mais de 40 milhões de domicílios urbanos sem escritura, e 60% dos imóveis brasileiros apresentam algum tipo de irregularidade documental.
A falta de documentação adequada gera riscos que vão desde a necessidade de investir na regularização da documentação do imóvel depois da compra , que pode não ter sido prevista no momento da compra, até a perda do imóvel, por causa de processos contra a pessoa cujo nome está na matrícula do imóvel como proprietário (o chamado proprietário tabular).
Um dos primeiros pensamentos a passar pela mente de quem percebe os problemas da falta de regularização do próprio imóvel é: usucapião.
Usucapião é uma forma de conseguir a propriedade de um bem (imóvel ou móvel, tanto faz) por ter exercido posse sobre ele durante um período previsto em lei.
(Móvel? Sim, existe usucapião de coisas móveis, como carros, roupas, jóias, livros, etc. Como escrevemos um artigo bem completo sobre o assunto , recomendamos a leitura para quem se interessou, e vamos seguir tratando só de imóveis.)
Entretanto, não são poucas as dúvidas quanto ao assunto.
Neste artigo, explicaremos rapidamente 10 conceitos-chave para entender a usucapião de imóveis no Direito brasileiro:
- Posse
- Animus domini
- Interrupção ou suspensão de prazo
- Oposição, ou contestação
- Defesa ou desforço possessório
- Título, ou justo título
- Boa fé
- Posse precária
- Posse clandestina
- Posse violenta
Em outros artigos, trataremos com muito mais detalhes a questão do tempo de posse para conseguir a usucapião e das fases e etapas de uma usucapião extrajudicial. Entendemos que estes dez conceitos são suficientes para começar a avaliar se um imóvel pode ser adquirido por usucapião; sem eles, o prazo é questão sem tanta relevância.
1. Posse
Para entender o que é posse, é preciso ter em mente duas coisas.
Primeira: a posse é um estado de fato. Quem segura um livro está na posse do livro; quando o solta, perdeu a posse do livro. Quem tem um computador em sua casa está na posse dele; quando o deixa na casa de alguém, não está mais na posse dele. (Não vamos distinguir posse direta e posse indireta para não complicar o artigo.)
Segunda: para o Direito brasileiro, em especial para o Código Civil , posse é o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade , que são:
- Usar: o nome já explica tudo.
- Gozar ou fruir: é receber os “frutos” do aproveitamento econômico do imóvel (p. ex., receber o dinheiro do aluguel).
- Dispor: é fazer com ela tudo o que as leis permitem (p. ex., vender, alugar, emprestar, etc.).
- Reaver: é retomar a coisa de quem esteja com ela irregularmente.
Quem exerce algum desses poderes sobre uma coisa de modo contínuo e sem contestações poderá estar a um passo de ser dono, desde que passe o prazo legal e atenda a outras condições definidas na legislação sobre usucapião.
2. Animus Domini
Esta expressão vem do latim – como outras bem conhecidas – e as duas palavras que a compõem são traduzidas assim:
-
A palavra Animus está flexionada no caso nominativo singular masculino (portanto é um sujeito), e significa “ânimo”, “espírito”, “intento”. (A palavra é aparentada de Anima, ou seja, “alma”.)
-
A palavra Domini está flexionada no caso genitivo singular masculino (portanto é um adjunto adnominal), e significa “de dono”.
-
A expressão Animus Domini, portanto, pode ser traduzida literalmente como “ânino de dono”, “espírito de dono”, “intento de dono”.
Para que uma posse consiga captar a propriedade de um bem pelo uso, é preciso que ela tenha animus domini, que exista a intenção de ser dono. É preciso colocar em prática a difícil arte de comprovar, na prática, a convicção profunda do possuidor de que é dono do imóvel. Sem isso, o que há são formas de posse que não têm animus domini, como essas:
-
Locação verbal ou por escrito: Um indivíduo ocupa um imóvel por meio de um contrato de locação, verbal ou escrito. Ele não possui a intenção de se tornar dono do imóvel, apenas usufruir temporariamente do espaço como locatário. (Para que ninguém diga que ninguém avisou: temos um artigo bem completo sobre os problemas do aluguel verbal, e por que é melhor fazer um contrato, nem que seja um contrato de aluguel padrão, desses vendidos em papelaria .)
-
Posse por comodato: Uma pessoa recebe um bem emprestado por meio de comodato, ou seja, um empréstimo gratuito com prazo determinado. Essa posse não é exercida com a intenção de se apossar permanentemente do bem, mas sim para uso temporário.
-
Permissão de uso: Alguém é autorizado pelo verdadeiro proprietário a ocupar um terreno ou imóvel por um período específico, sem a intenção de adquirir a propriedade, apenas para uso temporário e consentido.
-
Posse em nome de terceiros: Um indivíduo ocupa um bem em nome de outra pessoa, sem a intenção pessoal de se tornar proprietário. A posse é exercida em nome de terceiros, e não como dono efetivo do bem.
-
Posse em situação de guarda ou depósito: Alguém tem a posse temporária de um bem como guardião ou depositário, mas sem a intenção de se apropriar dele. A ocupação é feita com o propósito de cuidar ou proteger o bem temporariamente, não visando a aquisição da propriedade.
Listar exemplos de posse com animus domini pode induzir leitores a erro, porque, apesar de ter critérios simples, estabelecidos pelos tribunais brasileiros ao longo das décadas, o animus domini pode ser muito difícil de provar na prática. Cada caso deve ser analisado detalhadamente por um advogado, para verificar se há provas suficientes do animus domini. Feita esta observação, eis algumas situações que alguns tribunais entendem como posse com animus domini quando há provas suficientes:
-
Caso simples: alguém entra num terreno vazio, levanta uma casa, começa a morar nela, faz reformas, etc.; esta pessoa tomou o cuidado de guardar todas as notas de material de construção, guardou o alvará e o habite-se, guardou o pedido de ligação de energia elétrica, guarda sistematicamente as contas de luz, água e telefone junto com os recibos de pagamento, tem fotos das festas de aniversário dos filhos na sala… Os documentos guardados provam a intenção desta pessoa de ocupar aquele terreno como dona.
-
Caso simples, mas um pouco diferente: alguém mora numa casa abandonada há anos e nunca pagou IPTU; recebe a visita de um oficial de justiça que avisa sobre uma dívida alta de IPTU, e sobre o leilão judicial da casa para pagar a dívida; corre para vender o próprio carro e conseguir dinheiro para pagar a dívida; depois de pagá-la, muda o IPTU para seu próprio nome e começa a pagar regularmente o tributo; além disso, guarda numa pasta os carnês do IPTU junto com os comprovantes de pagamento. Os documentos de pagamento da dívida, de venda do carro, os boletos do IPTU, são indícios fortes de que esta pessoa sacrificou inclusive parte de seu patrimônio para assegurar sua posse sobre a casa como dona.
-
Outro caso simples, desta vez rural: alguém que, morando num sítio ou pequena fazenda comprada informalmente (“de boca”), faz o Cadastro Nacional de Imóvel Rural (CNIR) e, em seguida, emite o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) em seu nome, restando apenas fazer a regularização fundiária em cartório. Estes procedimentos não são simples, nem baratos; num processo de usucapião judicial ou extrajudicial, são indícios fortes de que esta pessoa pretende consolidar sua posse naquele sítio ou fazenda como dona.
-
Um caso mais complicado: alguém pagou pela compra de um apartamento e guardou todos os recibos de pagamento e o contrato de promessa de compra e venda, mas a incorporadora de quem comprou o apartamento faliu, os sócios sumiram para não pagar dívidas, e não há a quem pedir os documentos restantes para finalizar a transferência da propriedade. O contrato e os recibos são provas muito fortes de que esta pessoa queria comprar o apartamento, mas não conseguiu finalizar a transferência da propriedade por motivos além de sua responsabilidade.
Como se vê pelos exemplos, não é difícil ver a intenção de alguém de ser dono de um imóvel olhando cada caso bem de perto, mas pode ser difícil prová-la num processo de usucapião judicial ou extrajudicial. A assessoria de um advogado ajuda a produzir as provas certas do jeito certo, e demonstrar a juízes ou registradores, sem espaço para dúvidas, o animus domini de uma posse.
3. Interrupção ou suspensão de prazo
Qualquer ato que impeça a continuidade do tempo necessário para a usucapião, como ações judiciais ou notificações, tem como resultado a interrupção do prazo.
Como já temos um longo artigo explicando os efeitos jurídicos da passagem do tempo sobre os direitos (fato chamado, no Direito, de prescrição ou decadência) , recomendamos a leitura do artigo para quem queira se aprofundar, e vamos resumir o assunto:
-
Contínua é a posse que não foi interrompida. Seria muito complexo para este artigo explicar detalhadamente todas as causas que impedem, suspendem ou interrompem a contagem deste prazo quando nosso artigo sobre prescrição e decadência já tratou dos casos mais comuns de interrupção de prazo que podem interferir em usucapião .
-
Prescrição, como explicamos mais detalhadamente em outro artigo , é a perda da efetividade de um direito por causa do tempo que se demorou para exercê-lo; na usucapião, o proprietário tem o direito de pedir a coisa de volta, mas se não o exerce depois de certo prazo, não pode mais exercê-lo, e a propriedade passa a ser de quem está na posse da coisa.
-
No vocabulário do Direito, suspensão de prazo é como “pausar o cronômetro”: a contagem do prazo começa, para, e depois é retomada de onde parou.
-
No vocabulário do Direito, interrupção de prazo é como “zerar o cronômetro”: a contagem de tempo começa, para, e volta ao zero antes de ser iniciada novamente.
Para verificar se a posse é contínua, o que se deve fazer é olhar para a história da posse da coisa, e checar se alguma das hipóteses de impedimento, suspensão ou interrupção da prescrição aconteceu. Se impediu, a contagem do tempo de usucapião nem começa; se suspendeu, a contagem para e depois retoma de onde estava; se interrompeu, a contagem para e começa do zero.
4. Oposição, ou contestação
Nos procedimentos de usucapião, oposição, ou contestação, refere-se à resistência de terceiros à posse do usucapiente, contestando ou se opondo ao seu direito.
Quando há oposição ou contestação, a posse deixa de ser mansa e pacífica, deixa de ser incontestada; a depender da situação, pode perder as chances de se tornar posse capaz de gerar usucapião.
Quando se trata de usucapião de imóveis, só se pode contestar ou opor-se à posse de outra pessoa de duas formas: desforço possessório ou contestação judicial. Como o desforço possessório pede explicação mais detalhada, vamos tratar dele mais à frente, e explicar somente a contestação judicial neste item.
Para contagem de prazo em usucapião, contestação “de boca” é o mesmo que nada.
Não adianta simplesmente apontar para o imóvel e dizer que “é meu”; não adianta só bater boca; não adianta só falar mal do posseiro pelas costas; não adianta só levar o caso para programas de rádio ou televisão: ou o conflito em torno da propriedade do imóvel é levado ao Judiciário para decisão final, onde todos esses fatos precisam ser mostrados a um juiz com muitas provas (documentos, vídeos, áudios, testemunhas, etc.), ou nada feito.
A contestação judicial pode se dar de várias formas:
- Ações possessórias, como reintegração de posse, manutenção de posse ou interdito proibitório, pelas quais a posse é contestada por diversos motivos;
- Ações reivindicatórias ou petitórias, pela qual o proprietário registral (o que tem o nome na matrícula do imóvel) exige receber de volta a propriedade do bem;
- Algumas espécies de ônus reais, como hipoteca, penhora, alienação fiduciária e outros, desde que sejam capazes de fazer a propriedade do imóvel passar para outra pessoa sob certas condições;
- Outras ações judiciais envolvendo a posse do bem, como busca e apreensão, demarcatória, inventário, inquéritos e processos criminais, etc.
Boletins de ocorrência (BO) ou termos circunstanciados (TC), sozinhos, são provas fracas de contestação se não houver outras provas junto com eles. Qualquer um pode ir a uma delegacia e dizer qualquer coisa. Sim, quem vai a uma delegacia com uma acusação mentirosa termina sendo acusado de comunicação falsa de crime ou de contravenção (Código Penal, art. 340) ou de denunciação caluniosa (Código Penal, art. 339); infelizmente, a comunicação falsa é crime de menor potencial ofensivo (pena de 1 a 6 meses), e a denunciação caluniosa não está entre as preocupações mais urgentes da Polícia Civil e do Ministério Público, especialmente quando delegados e agentes de polícia não levam a investigação adiante. Com isso, infelizmente não faltam exemplos de BO ou TC com acusações falsas, criados somente para produzir prova instável. Tanto um quanto o outro são provas muito frágeis de contestação ou oposição à usucapião; devem ser usados, sim, mas sempre junto com outras provas.
Já com um inquérito policial a situação é diferente, porque sua abertura é sinal muito forte de que há indícios de crime em torno da posse do imóvel. Mesmo enquanto o inquérito estiver em andamento, ele é uma forma muito forte de contestação à posse, pois é o próprio Estado quem busca possíveis ilegalidades. Se o relatório do inquérito apontar que a posse do bem foi obtida por meio ilegal, ou se for aberta uma ação penal contra o posseiro por crime de esbulho possessório, mais forte ainda se torna a contestação.
A contestação judicial interrompe a contagem de prazo da usucapião, que recomeça sempre a cada novo ato do processo judicial ou do inquérito policial. (Não entendeu ainda o que é “interromper o prazo”? Você pode ler novamente a explicação acima no item 3, ou dar uma olhada em nosso artigo sobre prescrição e decadência .)
5. Defesa ou desforço possessório
Defesa possessória e desforço possessório são dois nomes técnicos para o uso da força. Não é difícil de entender: se alguém tenta tomar o imóvel, usa-se a força para se defender, ou para retomá-lo.
Derrubar cercas e muros, ou impedir que sejam levantados; impedir pessoas não-autorizadas de entrar; empurrar ou puxar pessoas para fora do imóvel; tudo isso pode ser considerado desforço possessório, desde que respeite os limites estabelecidos pelo Código Civil :
Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.
§1º. O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.
Trocando em miúdos:
-
Só se pode usar a força para defender a posse na mesma hora. Não adianta tentar resolver a situação “na marra” muito tempo depois, senão perde a razão.
-
Ao usar a força para defender a posse, não se pode ir além do indispensável.
-
Se a ameaça à posse acabou, o uso da força deve parar imediatamente.
O desforço possessório interrompe a contagem de prazo para usucapião de coisa móvel, porque é uma forma de contestar a posse. O problema é provar este uso da força, ainda mais quando, de cabeça quente, produzir prova é a última das preocupações.
O recomendado, portanto, é evitar ao máximo o desforço possessório, e recorrer ao Judiciário assim que surgir a primeira disputa em torno do imóvel:
-
Reintegração de posse para quem perdeu a posse;
-
Manutenção de posse para quem está sob ameaça de perder a posse;
-
Interdito proibitório contra quem ameaça a posse.
Estas três ações possessórias são somente algumas alternativas para quem quer defender a própria posse da forma correta, ou interromper a contagem de prazo de quem detém a posse de forma injusta.
6. Título, ou justo título
Uma condição necessária para a usucapião é que a posse tenha sido conseguida por justo título, ou seja, por meio de algum documento ou fundamento jurídico que ampara a posse, conferindo legitimidade ao usucapiente.
Diz o Código Civil :
Art. 1.201, parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.
Alguns exemplos de justo título encontrados no Provimento CNJ 65/2017 :
- Contrato de compra e venda;
- Escritura pública de compra e venda;
- Cessão de direitos, ou promessa de cessão;
- Pré-contrato;
- Proposta de compra;
- Procuração pública com poderes para si ou para outra pessoa, especificando o imóvel;
- Escritura pública de cessão de direitos hereditários, especificando o imóvel;
- Documentos judiciais de partilha, arrematação ou adjudicação.
Em todos estes casos, presume-se a boa fé de quem está na posse, ou seja, não é preciso provar a boa fé porque o justo título é prova suficiente dela.
Os exemplos não encerram a lista; é necessário avaliar cada caso, pois há muitos outros “justos títulos”.
7. Boa-fé
O justo título sempre anda junto da boa fé.
Diz o Código Civil :
Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa
Ou seja: está de boa fé na posse quem acredita exercê-la de maneira legítima e sem impedimentos legais.
Alguns exemplos:
-
Compra de um imóvel com documentação incompleta: Uma pessoa adquire um terreno de boa fé, acreditando que a documentação está completa, mas posteriormente descobre que há um erro no registro. No entanto, mantém a posse de maneira contínua e pacífica durante o período necessário para usucapião.
-
Herança: Um herdeiro recebe um imóvel por herança e, de boa fé, acredita ser o legítimo proprietário. Ele mantém a posse do imóvel de forma contínua e pacífica, sem contestações, pelo período exigido para usucapião.
-
Ocupação de área de terra abandonada: Alguém ocupa uma área de terra que aparentemente está abandonada e sem proprietário conhecido. Essa pessoa, de boa fé, mantém a posse dessa área, utilizando-a de forma contínua e pacífica, buscando regularizar sua situação.
-
Posse de imóvel por longo período sem contestações: Um indivíduo mora em um imóvel por muitos anos, de boa fé, acreditando ser legítimo proprietário, sem contestações de terceiros. Essa pessoa mantém a posse contínua, sem interrupções, durante o tempo estabelecido para usucapião.
-
Posse decorrente de contrato nulo: Alguém entra em posse de um imóvel baseado em um contrato que, posteriormente, é considerado nulo por questões legais. No entanto, essa pessoa permanece na posse do imóvel, agindo de boa fé, sem conhecimento da nulidade do contrato, e mantém a posse de forma contínua e pacífica durante o período exigido para usucapião.
8. Posse precária
Quando alguém detém um bem de forma legal, mas se nega a devolver depois de encerrada a justificativa legal, estamos diante de uma posse precária. Ela é o equivalente, no Direito Civil, ao crime de apropriação indébita, no Direito Penal.
Os casos mais conhecidos envolvem algum abuso de confiança; daí muitos dizerem que a posse precária costuma começar de modo justo e legítimo, mas deixa de ser justa quando a confiança é quebrada.
Alguns exemplos:
-
Apropriação sob pretexto de gestão: Uma pessoa, ao receber um bem para gestão ou administração, abusa dessa confiança, tomando posse do bem como se fosse seu, indo além dos poderes ou da intenção originalmente estabelecida.
-
Usurpação de posse por vínculo familiar: Um familiar ou pessoa próxima obtém a posse de um bem por meio de confiança depositada, mas abusa dessa relação para manter a posse ilegalmente, indo contra a confiança originalmente depositada.
-
Ocupação sob promessa de devolução: Alguém ocupa uma casa temporariamente, com a promessa de devolvê-lo após determinado período, mas, de forma desonesta, mantém a posse além do acordado.
-
Inquilino que não devolve imóvel ao fim do contrato: como a posse não está mais coberta pelo contrato de aluguel depois do fim do contrato, a posse não tem garantias legais, é precária.
Esses exemplos demonstram situações em que a posse precária é obtida ou mantida por meio do abuso da confiança depositada em alguém, sendo exercida de forma desonesta ou fraudulenta, o que não se alinha aos requisitos de boa-fé e posse contínua exigidos para a usucapião no Direito brasileiro.
Pelo que diz o artigo 1.208 do Código Civil , quando uma posse é identificada como precária, o prazo para a usucapião só começa a ser contado se houver posse com animus domini depois que a precariedade for resolvida, e se os demais critérios para a usucapião forem atendidos.
9. Posse clandestina
Posse que ocorre de forma oculta, escondida, sem conhecimento ou consentimento do verdadeiro proprietário. É o equivalente, no Direito Civil, ao que é o crime de furto, no Direito Penal.
Para a maioria dos tribunais, mesmo quando muita gente sabe da situação, basta que o dono não saiba, e a posse é clandestina. Somente em casos muito excepcionais esta regra informal é quebrada.
Alguns exemplos de posse clandestina:
-
Ocupação de imóvel depois de remoção forçada: situação comum depois de remoção forçada promovida por órgãos do Estado ou a serviço dele (Defesa Civil, construtoras executando obras públicas, etc.), quando pessoas adentram imóveis esvaziados para neles morar, ainda que por um tempo, alguns com expectativa de conseguir indenizações por uma posse que só tiveram porque os moradores anteriores foram forçados a esvaziar suas casas.
-
Avanço ilegal sobre terreno de vizinho: uma pessoa avança a cerca ou o muro sobre o terreno do vizinho, tomando um pedaço do lote sem conhecimento do proprietário, na expectativa de “ganhar” alguns metros de área sem que o vizinho perceba.
-
Instalação clandestina em área pública: Ocupação ilegal, sem permissão das autoridades competentes, de espaços públicos, como praças ou áreas verdes, para uso particular.
Em todos esses exemplos, a posse é exercida de forma clandestina, à revelia do proprietário, sem consentimento ou conhecimento prévio. Essas situações podem não ser reconhecidas como legítimas para a aquisição de propriedade por meio desse instituto.
Pelo que diz o artigo 1.208 do Código Civil , quando uma posse é identificada como clandestina, o prazo para a usucapião só começa a ser contado se houver posse com animus domini depois que a clandestinidade for resolvida, e se os demais critérios para a usucapião forem atendidos.
10. Posse violenta
Aquisição de posse mediante uso de violência ou agressão, física ou moral, ao dono da coisa ou ao possuidor anterior, contrariando os meios legais. É o equivalente, no Direito Civil, ao que é o crime de roubo, no Direito Penal.
Alguns exemplos:
-
Expulsão forçada da terra: o caso clássico, que formou a maior parte dos latifúndios no Brasil, que cobriu os campos brasileiros de sangue, é aquele em que um posseiro é expulso de suas terras de forma violenta por gente ligada a grandes proprietários de terra de sua região, não importanto se tinha ou não algum documento capaz de legitimar sua posse. Neste caso, a violência não está só no momento da expulsão, mas também nas ameaças do que pode acontecer se o posseiro tentar voltar à terra ou buscar resolver a situação na Justiça (“pode acontecer um acidente com alguém de sua família”, “aqui é muito deserto, as pessoas somem e ninguém repara”, etc.)
-
Grilagem de terras: outro caso clássico, na mesma linha do anterior, onde documentos são falsificados para criar a impressão de que são legítimos, e que dão direito à apropriação de terras onde já existem posseiros legítimos. Costuma vir junto com a expulsão forçada da terra, mas pode ser usada para enganar o Judiciário e conseguir mandados de reintegração de posse ilegais.
-
Violência doméstica: situação infelizmente muito comum, onde, depois de brigas, uma das partes de um casal expulsa de casa a outra parte, que é dona legítima do imóvel. Além da violência física, é comum também a tentativa de justificar a posse violenta com sob vários pretextos injustificáveis envolvendo violência patrimonial (“você nunca botou dinheiro em casa”, “quem pagou por essa casa fui eu”, “você vai sair daqui só com a roupa do corpo”, etc.), violência psicológica (“você não presta para nada”, “você nunca vai conseguir sustentar uma casa sem mim”, etc.) e outras formas de violência doméstica.
-
Violência do crime organizado: outra situação muito comum e de dificílima solução, em que alguém que desagradou os chefes locais do crime organizado é obrigado a fugir de casa para viver em outro lugar distante, e descobre que alguém foi colocado em seu lugar sem sua autorização. É mais um caso em que a violência não acontece somente no momento da expulsão, mas estende-se ao longo do tempo com ameaças à vida e à integridade física se a pessoa tentar voltar a morar no imóvel. Do ponto de vista de quem perdeu a casa, é muito difícil recuperá-la; do ponto de vista de quem entrou na casa, há o enorme risco de o proprietário anterior aparecer, provar a violência sofrida e impedir a aquisição da propriedade por usucapião.
Pelo que diz o artigo 1.208 do Código Civil , quando uma posse é identificada como violenta, o prazo para a usucapião só começa a ser contado se houver posse com animus domini depois que a violência for encerrada, e se os demais critérios para a usucapião forem atendidos.
Extra: algumas curiosidades sobre a palavra “usucapião”
-
Usucapião vem do latim, e tem como base as palavras usu (“pelo uso”, forma ablativa do verbo “usus”) e capio (“captar”); usu capio significa captar pelo uso.
-
Em português, a palavra usucapião tem gênero feminino, pois poderia ser “destrinchada” em algo como “captação pelo uso”; captação é palavra feminina, e como usucapião deriva dela, o gênero acompanha a derivação.
-
Ainda há no meio jurídico quem fale ou escreva o usucapião, em vez de a usucapião, porque o Código Civil de 1916 falava em o usucapião. Já no Código Civil de 2002 , depois de muitas críticas nos meios jurídicos, a palavra foi grafada com seu gênero correto.
-
Também no meio jurídico, ainda existe quem escreva usocapião, uma das formas antigas da palavra ainda vistas no Código Civil de 1916 , onde se lia tanto “usucapião”, com “u”, quanto “usocapião”, com “o”.
-
Fora do meio jurídico, especialmente entre pessoas de menor escolaridade, é comum falar em “uso campeão”; não é a forma correta, mas é interessante ver como a ideia de um “uso campeão” — ou seja, de um “uso que ganhou” — se aproxima bastante do que é, na prática, uma usucapião.
-
Além do “uso campeão”, já se ouviu falar também no “uso capiau”, talvez querendo com isso se dizer que o capiau ganha a terra pelo uso.
Conclusão
Para um entendimento mais abrangente do usucapião de imóveis no Direito brasileiro, é fundamental compreender esses conceitos.
Em todos os casos, uma análise detalhada de cada caso concreto ajudará a entender se a posse é ou não uma posse ad usucapionem (ou seja, se tem os elementos necessários para conseguir a usucapião).
Consulte sempre um advogado especializado para orientações precisas.