Usucapião extrajudicial: como fazer, passo a passo (guia completo, prático e simples)
17 Jan 2024 · Tempo de leitura: 34 minuto(s)No Brasil, segundo reportagem da Folha de S. Paulo de 13 de julho de 2023 , existem mais de 40 milhões de domicílios urbanos sem escritura, e 60% dos imóveis brasileiros apresentam algum tipo de irregularidade documental.
A falta de documentação adequada gera riscos que vão desde a necessidade de investir na regularização da documentação do imóvel depois da compra , que pode não ter sido prevista no momento da compra, até a perda do imóvel, por causa de processos contra a pessoa cujo nome está na matrícula do imóvel como proprietário (o chamado proprietário tabular).
Um dos primeiros pensamentos a passar pela mente de quem percebe os problemas da falta de regularização do próprio imóvel é: usucapião.
Usucapião é uma forma de conseguir a propriedade de um bem (imóvel ou móvel, tanto faz) por ter exercido posse sobre ele durante um período previsto em lei.
(Móvel? Sim, existe usucapião de coisas móveis, como carros, roupas, jóias, livros, etc. Como escrevemos um artigo bem completo sobre o assunto , recomendamos a leitura para quem se interessou, e vamos seguir tratando só de imóveis.)
Entretanto, não são poucas as dúvidas quanto ao assunto. Temos um guia com 10 conceitos-chave para entender a usucapião , cuja leitura recomendamos antes de prosseguir.
Desta vez, vamos apresentar uma forma simples, rápida e mais barata de conseguir regularizar a documentação de um imóvel: a usucapião extrajudicial
O que é a usucapião extrajudicial?
É uma forma simplificada e eficiente de conseguir a propriedade de um imóvel recorrendo aos serviços de advogados, tabelionatos de notas e cartórios de imóveis, sem precisar de abrir processos demorados na Justiça.
Um ponto fundamental na usucapião extrajudicial é que não pode haver conflito possessório envolvido, pois não existe decisão sobre conflito de posse no extrajudicial.
Se for identificado algum conflito na posse, ou se alguém contestar o pedido, o cartório de imóveis tentará mediar a situação; se não for possível chegar a uma solução consensual, o próprio cartório de imóveis encaminha tudo ao Judiciário para que o conflito seja resolvido pelas partes por lá, ou por força de decisão de um juiz.
O melhor caminho, neste caso, é tentar resolver o conflito antes de fazer o pedido de usucapião, para evitar o caminho judicial. Caberá ao advogado construir estratégias com o cliente e usar todas as técnicas de negociação possíveis para superar o problema e manter a usucapião no extrajudicial.
Se necessário, pode-se recorrer a contratos estabelecendo direitos e deveres recíprocos (por exemplo, envolvendo acordos sobre passagens e servidões ), capazes de estabilizar ou encerrar o conflito.
Quanto tempo dura uma usucapião extrajudicial?
Somando os prazos legais, temos o prazo ideal de setenta e cinco dias, ou seja, dois meses e meio.
Na prática, muitos fatores intereferem neste prazo ideal, e fazem a usucapião extrajudicial demorar um pouco mais.
É realista estimar dois prazos para finalizar a usucapião extrajudicial: cinco meses, num cenário ótimo, a onze meses, num cenário péssimo.
Neste artigo identificaremos alguns gargalos que retardam o procedimento. Sabendo lidar com eles, a usucapião tem maiores chances de ser concluída num prazo próximo do cenário ótimo.
Por que foi criada a usucapião extrajudicial?
A usucapião extrajudicial passou a ser possível como parte do esforço de desafogar o Judiciário do volume crescente de processos que a ele chegavam.
Como se sabe, desde a Constituição de 1988 (artigo 5º, incisos LXXIV a LXXVIII) que se busca assegurar a todo cidadão brasileiro o direito de acesso à Justiça, independentemente das condições financeiras, e que se tenta fazer com que os processos tenham duração razoável e tramitem rápido.
Com a institucionalização das defensorias públicas a partir de 1994 e a reorganização dos juizados especiais (antigos 'de pequenas causas') em 1995 , foram criadas as condições para uma explosão no número de processos no Judiciário.
O que antes era um órgão de acesso extremamente restrito, dado o alto valor das custas processuais, passou a ser cada vez mais demandado. Com o maior número de processos, os juízes ficaram sobrecarregados, e os processos passaram a demorar cada vez mais. Nas usucapiões judiciais, por exemplo, ainda é muito comum que uma pessoa dê entrada no processo para que somente seus filhos recebam a propriedade do imóvel como resultado útil.
Demorou bastante até que, em 2004, os legisladores fizessem uma reforma geral no Judiciário com a Emenda Constitucional 45 , que criou na Constituição Federal os direitos à razoável duração do processo e à celeridade na tramitação e mandou criar uma comissão responsável por propor mudanças nas leis federais para ampliar o acesso à Justiça e dar maior celeridade à prestação jurisdicional .
Um dos produtos deste esforço é o Código de Processo Civil de 2015, que simplificou vários procedimentos (complicando outros), e criou a possibilidade de resolver certas questões fora do Judiciário, por meio de cartórios. A usucapião, nesta mudança legislativa, deixou de ser tratada como um procedimento judicial específico (que, no Código de Processo Civil de 1973, era cheio de dificuldades e empecilhos).
Na mesma canetada, os legisladores de então abriram a possibilidade de levar a usucapião para fora do Judiciário . Para isso, mudaram também a Lei de Registros Públicos, de 1973, criando nela o artigo 216-A , que estabelece as linhas gerais da usucapião extrajudicial.
Como se vê, a usucapião judicial faz parte de um longo esforço de garantir maior acesso à Justiça e maior celeridade na tramitação. Ou seja: se existe usucapião extrajudicial, é para que a decisão saia rápido, e assegure o quanto antes a propriedade para quem a ela tem direito.
Importância da capacidade e iniciativa do advogado
A usucapião extrajudicial depende muito da capacidade do advogado de produzirem as provas adequadas para todo o procedimento; sem isso, o mais provável é que o pedido seja rejeitado.
Da mesma forma, e ao contrário do que acontece no Judiciário, cabe ao advogado fazer andar a usucapião extrajudicial.
Alguns exemplos da capacidade e iniciativa necessárias ao advogado no extrajudicial:
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No Judiciário, o advogado pede ao juiz que solicite um documento a algum órgão público por ofício; no extrajudicial, é o advogado quem tem de providenciar o documento.
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No Judiciário, o advogado pede ao juiz que nomeie um perito para produzir provas; no extrajudicial, é o advogado quem tem de orientar a parte a escolher um perito, e é também ele quem deve orientar sobre as provas que se espera que o perito produza;
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No Judiciário, um juiz pode até ser punido se demorar demais a decidir, cabendo ao advogado somente provocar o juiz a decidir rápido; no extrajudicial, a produção de documentos é muito rápida, e um advogado que não administre bem seu próprio tempo poderá ser atropelado pela velocidade dos tabelionatos de notas e cartórios de imóveis, com prejuízo para seu cliente.
Neste artigo, veremos vários momentos em que cabe ao advogado a iniciativa, em que depende dele fazer o procedimento andar mais rápido.
Fases da usucapião extrajudicial
Embora a legislação não fale em “fases”, “etapas” ou o que quer que seja, a experiência prática em procedimentos de usucapião extrajudicial recomenda organizá-los em três fases distintas e sucessivas, cada uma desempenhando um papel crucial na validação do direito adquirido por usucapião:
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A fase preparatória, de total iniciativa da pessoa interessada pela usucapião mas, principalmente, do advogado contratado para ajudá-la neste procedimento;
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A fase notarial, quando um tabelionato de notas é chamado a constatar, com sua fé pública, se a pessoa interessada consegue provar seu direito à usucapião do imóvel;
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A fase registral, quando o cartório onde o imóvel está registrado acolhe as provas produzidas até o momento, analisa tudo e, se tudo houver dado certo, depois de comunicar amplamente a possíveis interessados sobre a existência da usucapião, averba a usucapião na matrícula do imóvel.
É também a experiência prática quem recomenda, para gestão mais fina do procedimento, subdividir cada fase em etapas.
A seguir, serão detalhadas as fases e suas respectivas etapas.
Fase preparatória
A fase preparatória é o “marco zero” da usucapião. Não a consideramos na contagem dos prazos, porque, como ficará evidente, é a fase mais complexa de todo o procedimento.
Nesta fase, o advogado desempenha um papel essencial. Cabe a ele orientar e assistir as pessoas interessadas na usucapião enquanto produzem e obtém as provas necessárias para comprovar a posse mansa, pacífica e ininterrupta do imóvel pelo período estabelecido em lei.
A atuação qualificada do advogado nesta fase é fundamental para que as fases seguintes dêem certo. Somente o advogado, graças a seu treinamento na obtenção e análise de provas, conseguirá avaliar se a pessoa interessada na usucapião já tem as condições e provas necessárias para pedi-la, ou se é necessário produzir provas complementares para evidenciar pontos ainda confusos ou sem provas.
É nesta fase que o advogado tecnicamente qualificado justificará a sua reputação e seus honorários. Caberá a ele:
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Acolher todas as provas apresentadas pela pessoa interessada na usucapião;
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Analisar cada prova acolhida, para identificar se os conceitos-chave da usucapião estão presentes e bem provados;
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Construir, junto com o cliente, uma linha de tempo que venha desde o início da posse até o momento atual, listando os fatos mais importantes de todo o período;
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Fazer cada fato importante, cada acotecimento relevante e cada ponto de destaque da linha do tempo ser demonstrado com alguma prova;
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Encontrar, na linha do tempo, os pontos sem provas, as lacunas, os fatos de difícil comprovação e os fatos impossíveis de provar;
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Construir uma estratégia de atuação para todo o procedimento, com base na linha do tempo; nas provas já existentes; nas provas a produzir; nos procedimentos além da usucapião eventualmente necessários para a regularização plena do imóvel; em eventuais conflitos possessórios a contornar com negociação e diálogo; e no orçamento do cliente.
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Contribuir com o cliente para a produção de todo tipo de prova admitida pelo Direito, capaz de provar o que estava sem prova, fechar as lacunas, construir soluções para provar o que era difícil de provar, evidenciar a impossibilidade de provar certos fatos e contornar qualquer outra dificuldade probatória.
A prática evidencia existirem trẽs etapas principais para esta fase: a análise de caso e das provas existentes, a obtenção e organização das provas, e a redação e protocolo da petição inicial.
Etapa preparatória 1: análise de caso e das provas existentes
Cabe ao advogado, ao acolher as provas e o relato de seu cliente, analisar pormenorizadamente o caso e as provas já existentes, conforme as seguintes normas jurídicas:
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Código Civil, especialmente os artigos 1.238 a 1.244 ;
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Código de Processo Civil , onde deixou de existir um procedimento especial de usucapião, mas ainda contém regras específicas para usucapião que devem ser seguidas;
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Lei de Registros Públicos, especialmente o artigo 216-A e seguintes ;
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Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial , editado em 2023 pelo Conselho Nacional de Justiça;
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O Provimento 65/2017 , do Conselho Nacional de Justiça (CNJ);
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O código de normas extrajudiciais do Estado onde se situa o imóvel;
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Outras normas locais eventualmente aplicáveis (lei orgânica municipal; plano diretor; lei de ordenamento, uso e ocupação do solo; código de obras; código de posturas; leis ambientais locais; etc).
Nesta fase, a depender da dificuldade do caso, o advogado poderá inclusive recomendar ao cliente que não espere estar pronto para dar entrada na usucapião imediatamente, pois ainda há muitos pontos a provar; só se recomenda fazê-lo, entretanto, se o advogado conseguir apresentar a seu cliente um bom plano para superar as dificuldades, com orçamento e prazos. As dificuldades encontradas devem ser reais, palpáveis, compreensíveis por qualquer pessoa, e poderão inclusive justificar a majoração dos honorários advocatícios.
Algumas dificuldades que já encontramos:
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Imóveis sem matrícula, que exigem descrição georreferenciada, maior esforço na prova da posse e, posteriormente, um procedimento de abertura de matrícula;
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Imóveis que não correspondem exatamente ao que está na matrícula, que exigem os mesmos esforços e, em paralelo à usucapião, um procedimento de retificação de matrícula;
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Cadeia sucessória verificada somente no sistema de transcrições, para imóveis cuja última transação registrada é anterior a 1973, que exige pesquisa mais aprofundada no sistema de transcrições do cartório de imóveis, anterior ao atual sistema de matrículas;
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Tentativa de usucapião de imóvel construído com recursos do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), tornada impossível por força de posicionamento dos tribunais superiores de que não se pode usucapir imóvel construído com recursos públicos sem fraudar o objetivo da política pública habitacional que justificou sua própria construção;
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Cadeia sucessória exclusivamente verbal, muitíssimo comum em áreas rurais e em certos bairros urbanos, contornável com a redação de contratos reconhecendo e formalizando as transações passadas ou, sendo impossível localizar as partes, com muitas declarações escritas de testemunhas e uma declaração por escrito dos confrontantes reconhecendo a posse ;
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Terra pública, que não se pode usucapir, sendo necessário regularizar a posse por meio de outros instrumentos;
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Terra devoluta, tipo especial de terra pública que torna a regularização extremamente complexa e acaba com as possibilidades de usucapião;
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Imóvel emprestado, ou dado “de favor”, fato que pode arruinar as expectativas de usucapião se não ficar muito bem provada a intenção de ser dono;
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Imóvel com venda de ascendente a descendente, que, como explicamos em outro artigo nosso, pode terminar sendo anulada sob certas condições, e faz pairar sobre a usucapião o risco de um conflito possessório de longa duração dentro da família.
Em casos assim, e em outros que coloquem dificuldades parecidas, o melhor a fazer é resolver o problema primeiro, e pedir a usucapião depois. Em raríssimas situações é a própria usucapião quem ajudará a resolver o problema, mas só uma análise do caso poderá dizer qual o melhor caminho.
Etapa preparatória 2: obtenção e organização das provas
Superada a etapa anterior, o advogado começa a organizar as provas que já existem, e prepara uma lista com provas daquilo que ainda não ficou bem provado, para buscar obter estes documentos, ou conseguir meios para substituir os que não puderem ser obtidos.
A análise do caso indica quais provas faltam para dar entrada no pedido. Alguns exemplos de provas a obter:
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Certidões de cartórios de imóveis;
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Certidões judiciais;
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Habite-se (fornecido pela prefeitura para imóveis urbanos de construção regular);
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Certidão declaratória (fornecida pela prefeitura para imóveis urbanos sem construção regular);
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Declarações de testemunhas reconhecendo a posse;
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Segunda via de contas de energia elétrica, telefone ou água;
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Declarações de Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) onde o imóvel seja declarado;
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Sentenças de divórcio ou dissolução de união estável onde o imóvel seja mencionado;
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Notas fiscais ou recibos de entrega de mercadorias relacionando o nome do cliente com o endereço do imóvel.
Cabe ao advogado, nesta fase, montar um orçamento que ajude o cliente a se organizar para pagar o que for necessário para a produção das provas:
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Cada cópia deve ser autenticada, e cada assinatura deve ter firma reconhecida. Sem isso, nem serão consideradas.
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Há certidões gratuitas e certidões pagas; o advogado deve antecipar as mais previsíveis (a legislação indica as certidões imprescindíveis) e apresentar o custo total ao cliente.
Ao final desta etapa, os documentos são organizados e preparados para encaminhar ao tabelionato de notas.
Nesta etapa, poderão ocorrer obstáculos procedimentais bem prosaicos. No fim das contas, todos são superáveis pelo advogado tecnicamente preparado, mas retardam o protocolo da petição inicial. Eis alguns:
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Confrontantes resistentes em assinar a declaração de reconhecimento da posse ou o memorial descritivo.
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Confrontantes que apresentam número de CPF ou RG que não confere com o de sua firma aberta em cartório.
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Confrontantes que marcam dia e hora para coleta de assinaturas na declaração de reconhecimento da posse ou no memorial descritivo, mas faltam reiteradamente, ou adiam de última hora.
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Confrontantes que não lembram onde têm firma aberta.
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Tabelionato de notas ou cartório de registro de imóveis local que ainda não digitalizou seu sistema, ou que tem dificuldades em lidar com os atos notariais digitais disciplinados pelo Provimento CNJ 100/2020.
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Cartório de imóveis que não faz pesquisa no sistema de transcrições.
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Prefeitura que não consegue localizar o habite-se de imóvel ainda não averbado na matrícula.
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Prefeitura que, em vez de fornecer certidão declaratória de imóvel construído irregularmente, transforma o pedido em solicitação de habite-se, multiplicando em várias vezes o valor do orçamento inicial.
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Prestadora de serviço que cobra caro por segunda via de conta de água, energia elétrica ou telefone.
Etapa preparatória 3: redação e protocolo da petição inicial
Superadas as duas fases anteriores, o advogado redige a petição inicial, documento que:
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Demonstra os seguintes itens:
- Modalidade de usucapião requerida e sua base legal;
- Origem e características da posse;
- Existência de edificações ou benfeitorias, com a data em que foram realizadas;
- Nome e estado civil dos possuidores anteriores, se houver;
- Número da matrícula do imóvel, se houver;
- Descrição georreferenciada da área ocupada pelo imóvel;
- Informação de que o imóvel não tem matrícula ou transcrição, se for o caso;
- Valor do imóvel;
- Outros requisitos da legislação aplicável;
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Alinha todos os fatos relevantes numa só narrativa;
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Indica explicitamente a(s) prova(s) de cada fato relevante;
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Indica eventuais problemas encontrados na documentação, apontando soluções e saídas; e
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Pede que se faça a ata notarial para usucapião.
A petição de usucapião extrajudicial é simples, direta e pragmática. Não vale a pena fazer longas citações de juristas, de legislação ou de jurisprudência (exceto em situações muito especiais). Quanto menos palavras forem usadas para dizer a mesma coisa, melhor.
Ao redigir a petição, é de bom tom que o advogado apresente, ao final dela, uma lista de checagem da documentação. Ajuda a organizar os documentos, e consegue a simpatia dos tabelionatos e dos cartórios por poupar-lhes o trabalho de verificação.
A petição é protocolada, e começa a tramitação da usucapião.
Fase notarial
Começa aqui o reconhecimento oficial da usucapião: um tabelionato de notas deverá receber a petição inicial com as provas produzidas, e constatará se a pessoa interessada tem ou não direito a usucapir o imóvel. A contagem de prazo começa neste momento.
Na “divisão de trabalho” entre cartórios, o papel do cartório de imóveis é só o de guardar as matrículas dos imóveis e garantir que elas contenham exatamente aquilo que se vê na realidade. Não cabe aos cartórios de imóveis investigar nada. Quem tem a “tarefa” de constatar fatos são os tabelionatos de notas; são os mesmos cartórios que autenticam cópias e reconhecem firmas.
Na usucapião, cabe ao advogado e seu cliente mostrar ao tabelionato de notas toda a documentação capaz de provar que o imóvel existe; que o cliente está na posse do imóvel; que o tempo de posse está correto; que sua posse tem poder para usucapir o imóvel; que a planta e o memorial descritivo “batem” com o imóvel; que os vizinhos (confrontantes, em linguagem jurídica) reconhecem sua posse e estão de acordo com as medidas desenhadas na planta e no memorial descritivo; e que o cartório de imóveis pode confiar nisso tudo porque o tabelionato recebeu a documentação, checou tudo, viu que está conforme as regras, e deu OK a tudo.
Estas conclusões do tabelionato de notas ficam registradas por escrito num documento chamado ata notarial. Sem a ata notarial, o cartório de imóveis não permite abertura de usucapião.
A separação de funções a que nos referimos só se vê perfeita e acabada em comarcas maiores. Em comarcas menores, esta divisão é economicamente inviável; por isso, o mesmo cartório assume várias serventias. São comuns os casos, especialmente em comarcas muito pequenas, em que existe um só cartório “faz-tudo” na cidade: registra imóveis, títulos e documentos; faz o registro civil de pessoas físicas e jurídicas; providencia o protesto de títulos; registra imóveis; e atua como tabelionato de notas. Quanto maior a comarca, mais viável se torna a separação de funções, e os cartórios passam a se especializar. Antes de prosseguir, deve-se buscar informações sobre a situação dos cartórios na comarca, para construir uma estratégia de ação.
Só podem fazer a ata notarial os tabelionatos de notas que funcionem na mesma comarca onde está o imóvel.
A experiência prática permite organizar a fase notarial da usucapião em etapas para uma gestão mais fina dos procedimentos. As etapas devem ser seguidas à risca para que tudo dê certo na fase registral.
Etapa notarial 1: análise das provas
Com a petição em mãos, o tabelionato de notas vai analisar as provas apresentadas.
Se o tabelionato entender que faltou alguma coisa, emitirá uma nota devolutiva indicando tudo o que falta, sem exceção, e dará prazo para resolver as pendências.
A prática mostra que a legislação orienta os cartórios a buscar, na petição e na documentação, evidências que atendam aos requisitos da ata notarial impostos pelo Provimento CNJ 65/2017 (artigo 4º, inciso I, alíneas “a” até “g”) e pelo Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial (artigo 401, inciso I, alíneas “a” até “g”). Para facilitar, organizamos estes requisitos na forma de perguntas, com orientações sobre a melhor forma de respondê-las.
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Quem é você? Onde mora? Tem problemas judiciais? O tabelionato de notas precisa ter certeza de quem é a pessoa interessada na usucapião, onde mora, e se tem algum processo na Justiça referente ao imóvel. Isto se prova com RG, CPF, comprovante de residência, certidão de nascimento ou casamento (para comprovar estado civil) e várias certidões judiciais. Se a pessoa interessada na usucapião for casada ou conviver em união estável, é preciso apresentar a mesma documentação do cônjuge/convivente, para demonstrar a outorga conjugal.
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Seu advogado é advogado mesmo? Ele está autorizado a trabalhar para você? O tabelionato de notas precisa ter certeza de que o advogado é mesmo um advogado, e que ele trabalha para você. Isto se prova com cópia autenticada da carteira da OAB, e com uma procuração com firma reconhecida.
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Quais os limites, tamanho e características do imóvel? O tabelionato de notas precisa saber detalhes sobre o imóvel, para dizer até onde vai sua posse, e onde começa a dos vizinhos. Isto se prova com algumas plantas, memorial descritivo e certidões, sempre com cópias autenticadas e assinaturas com firmas reconhecidas. Nas plantas e memorial, não basta ser um desenho qualquer: é preciso haver uma Anotação de Responsabilidade Técnica (ART) ou um Registro de Responsabilidade Técnica (RRT), documento que comprova que quem produziu as plantas e o memorial tem capacidade técnica e está legalmente autorizado a produzir estes documentos.
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Existem donos anteriores? Deixaram problemas para o imóvel? Na maioria dos casos de usucapião, é possível somar o tempo de posse dos donos anteriores (chamados de antecessores no vocabulário jurídico) ao seu próprio tempo de posse. Para isso, é preciso demonstrar ao tabelionato de notas que os antecessores não deixaram problemas sobre o imóvel (penhoras, hipotecas, dívidas, etc.). É preciso demonstrar, também, que os antecessores não estão disputando a posse do imóvel contra você. Tudo isso se demonstra com certidões em nome do antecessor.
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Está tudo OK com o dono que aparece na matrícula do imóvel? A maioria dos imóveis tem alguma matrícula em cartório de imóveis. Pouquíssimos não a têm. A matrícula é uma espécie de “ficha corrida” de cada imóvel, onde aparecem o nome do dono, os limites, o tamanho, os vizinhos e cada transmissão do imóvel (compra e venda, herança, penhora, etc.). No vocabulário jurídico, proprietário tabular é a pessoa cujo nome aparece por último na matrícula, indicando que é o atual “dono” (ao menos “no papel”). O tabelionato de notas precisa de provas de que o proprietário tabular não deixou problemas para o imóvel (penhoras, hipotecas, dívidas, etc.). Isto se prova com algumas certidões.
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Quais são os imóveis vizinhos? Como são? Quem são seus donos? No vocabulário jurídico, confrontantes são os donos dos imóveis que fazem limite com o seu imóvel pela esquerda, pela direita e pelo fundo. Estes imóveis são chamados, no vocabulário jurídico, de confinantes. O tabelionato de notas precisa ter certeza de quem são estas pessoas e do estado civil delas; se forem casadas ou em união estável, os cônjuges/conviventes precisam ser identificados também, porque em imóveis não se faz nada sem a chamada outorga conjugal (ou seja, autorização do cônjuge/convivente). Isto se prova com cópias autenticadas do RG, CPF, comprovante de residência e certidões de nascimento/casamento. Da mesma forma, o tabelionato de notas precisa ter certeza dos limites esquerdo, direito e de fundo dos imóveis, para comunicar ao cartório de imóveis. Isto se prova com uma certidão para cada imóvel.
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Há quanto tempo você tem o imóvel? Como entrou nele? Este é o “coração” de uma usucapião. Os demais documentos serviram para chegar até aqui. É necessário demonstrar ao tabelionato os pontos apresentados a seguir.
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Data de início: quando começou sua posse? O tabelionato precisa de algum documento que prove uma data para o início da contagem do prazo da posse.
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Justo título: por que você tem a posse? “Justo título” é algum documento que a legislação considera válido para justificar a usucapião de um imóvel. Os mais comuns são contratos particulares de compra e venda, compromissos ou recibos de compra e venda, escrituras de cessão de direitos, proposta de compra, reserva de lote, “contratos de gaveta”, etc. O tabelionato de notas precisa de algum documento que prove que você entrou legalmente no imóvel, ou que qualquer ilegalidade/irregularidade já não existe mais.
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Continuidade: sua posse foi interrompida ou suspensa? Como explicamos num artigo dedicado aos efeitos da passagem do tempo sobre os direitos , a contagem de prazo para usucapião funciona como um cronômetro. Se foi suspensa, o cronômetro “pausa” e começa de onde parou; se foi interrompida, o cronômetro “zera” e começa do início. Numa usucapião, a melhor situação é quando não há suspensão ou interrupção. O tabelionato de notas precisa de provas de que sua posse foi ininterrupta desde o início, ou de que, mesmo com suspensões e interrupções, você tem tempo de posse suficiente para usucapir o imóvel.
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Posse ad usucapionem: sua posse te dá direito a usucapir o imóvel? Nem toda posse dá direito a usucapir um imóvel. O assunto é complexo demais; para não complicar muito, pois tratamos do assunto com mais detalhes em outro artigo , basta dizer que é preciso querer ser dono(a) do imóvel para usucapir, ou então a posse não dá direito à usucapião. Quem “cuida”, quem “usa emprestado”, quem “pegou para devolver”, etc., só consegue usucapião em casos muito raros. O tabelionato precisa de provas de sua intenção de querer ser dono(a).
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Etapa notarial 2: notas devolutivas
Se o advogado fez tudo certo na fase preparatória, é muito, mas muito difícil que o tabelionato de notas apresente questionamentos. Mesmo assim, eles podem acontecer. Há tantas interpretações para os mesmos fatos e provas quanto há pessoas neste mundo.
Basta uma divergência de interpretação da legislação, ou o entendimento de que algum fato necessário não ficou suficientemente provado, para que o tabelionato de notas emita uma nota devolutiva, em que indicará as provas que considera necessárias para dar seguimento à fase notarial.
A nota devolutiva deve ser clara, simples de entender, e deve apresentar de forma explícita os documentos que o tabelionato de notas exige para se convencer de determinada alegação, ou para atender alguma exigência legal.
Em alguns casos, especialmente quando o item apontado não é uma exigência legal, é possível tentar dialogar junto ao cartório para superar a lacuna. Pode acontecer, entretanto, de se fazer necessária coleta e produção de provas.
É por isso que o trabalho do advogado na fase preparatória é de extrema importância. Conhecendo a tramitação de usucapiões extrajudiciais em tabelionatos de notas, o advogado sabe o que é necessário para evitar problemas nesta etapa.
Etapa notarial 3: vistoria
Com tudo resolvido, ou se estiver tudo OK logo de início, o tabelionato enviará um funcionário para vistoriar o imóvel e comprovar que ele realmente existe, e corresponde à descrição na planta e no memorial descritivo.
Em alguns Estados, os códigos de normas e procedimentos extrajudiciais dizem que esta vistoria não é obrigatória, deixando os tabelionatos livres para decidir se a fazem ou não.
Por precaução, a vistoria termina sendo realizada, pois é um elemento muito forte de prova: em vez de simplesmente confiar nas provas apresentadas, o tabelionato envia alguém ao imóvel, que chega lá, vê tudo, pergunta aos vizinhos sobre o que lhe foi apresentado e confere se está tudo OK.
Por isso, como parte da fase preparatória, é importante conversar com os vizinhos sobre a usucapião, para que não estranhem quando chegar alguém fazendo perguntas.
Etapa notarial 4: ata notarial
Ao final, o tabelionato de notas redigirá uma ata notarial constatando o que viu.
Este é o documento que confirma a posse sobre o imóvel, e assegura que ela está apta a permitir a usucapião.
A ata notarial contém, basicamente, respostas às perguntas apresentadas como parte da etapa 2, construídas com base nos requisitos da ata notarial impostos pelo Provimento CNJ 65/2017 (artigo 4º, inciso I, alíneas “a” até “g”) e pelo Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial (artigo 401, inciso I, alíneas “a” até “g”).
Fase registral
A fase registral encerra a usucapião extrajudicial.
Aqui, o cartório de imóveis onde o bem está registrado recebe o pedido de usucapião administrativa, e toma conhecimento da intenção de usucapir o imóvel. O cartório, por sua vez, alerta diversos sujeitos interessados no imóvel sobre o processo em curso. Após a comunicação, e não havendo ninguém contraŕio, o registro da usucapião é efetivado, culminando com a averbação na matrícula do imóvel.
O único cartório autorizado a processar a usucapião extrajudicial é o cartório de registro de imóveis que, pelas leis estaduais, atua no território onde está situado o imóvel.
A experiência prática recomenda, para facilitar a gestão fina desta fase, subdividi-la em etapas, descritas a seguir.
Etapa registral 1: preparação da documentação e redação da petição inicial
Com a ata notarial em mãos, cabe ao advogado fazer, novamente, toda a preparação da documentação e a redação da petição inicial.
A documentação apresentada ao tabelionato de notas deve ser apresentada novamente, no original (isto é, como entregue ao cartório de notas).
Ao redigir a nova petição inicial, aproveita-se quase tudo da petição anterior, inclusive a lista de checagem de documentos.
Etapa registral 2: abertura da usucapião no cartório de registro de imóveis
Entregue a petição e a documentação, o cartório de registro de imóveis avalia se está tudo OK para dar continuidade.
Se ficou algo pendente, o cartório emite uma nota devolutiva, indicando o que precisa ser corrigido, ou a documentação faltante, dando um prazo para resolver as pendências.
A usucapião não anda enquanto as pendências não forem resolvidas.
Etapa registral 3: notificação de confrontantes ausentes
Se, na fase preparatória, não houver sido possível coletar a assinatura com firma reconhecida de todos os confrontantes no memorial descritivo, na planta baixa e na planta de situação do imóvel, o cartório de registro de imóveis mandará notificar cada um deles por correio.
Se algum dos confrontantes ausentes questionar a posse, ou colocar qualquer obstáculo à usucapião, o registrador pode tentar mediar a situação; se não for possível, encaminha a usucapião para o Judiciário, onde um juiz dará continuidade.
Se nenhum confrontante contestar, a usucapião segue.
Etapa registral 4: notificação do município, Estado e União
O passo seguinte é descobrir se o imóvel é público ou particular, porque não se faz usucapião de imóvel público.
Esta etapa é especialmente necessária quando o imóvel a usucapir não tem matrícula, mas é feita também quando é apresentada matrícula e cadeia sucessória.
Para checar se o imóvel é público, o cartório manda notificar o município (prefeitura), o Estado (governo estadual) e a União (governo federal, especialmente a Secretaria do Patrimônio da União -- SPU ) para dizerem se o imóvel é deles.
Este é um dos gargalos mais importantes. Estes órgãos demoram muito para responder. Muito mesmo. Se a usucapião for fora das capitais estaduais, então, o Estado e a União demoram meses para responder.
É certo que “a inércia dos órgãos públicos diante da notificação […] não impedirá o regular andamento do procedimento nem o eventual reconhecimento extrajudicial da usucapião” ( Provimento CNJ 65/2017 , art. 15, § 1º).
Também é certo que o Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial estabelece prazo de 15 dias para as respostas (art. 412), assim como o Provimento CNJ 65/2017 (art. 15).
Nada disso obstante, é ainda mais certo que nada disso impede violações aos prazos, ou a existência de cartórios pouco simpáticos a prosseguir com a usucapião extrajudicial sem a manifestação deste órgãos, que poderão se manifestar a qualquer momento da usucapião judicial e, a depender de sua resposta, convertê-la em usucapião judicial. Nenhum cartório quer ter o trabalho de levar a usucapião extrajudicial até suas últimas etapas para vê-la convertida em judicial.
Uma solução é tentar conseguir previamente uma posição destes órgãos, e chegar à fase registral com um posicionamento já firmado. Como “será admitida a manifestação do Poder Público em qualquer fase do procedimento” ( Provimento CNJ 65/2017 , art. 15, § 2º), nada impede já existir no procedimento, desde o início, manifestação do Poder Público, antecipando as notificações cartoriais.
Outra solução, depois de a usucapião estar na fase registral com as notificações já emitidas, é deslocar-se até a sede do órgão na capital do Estado, de preferência agendando reunião previamente com o funcionário responsável, para pedir que dê a resposta o quanto antes.
Qualquer outra solução é válida, desde que os órgãos notificados respondam.
Se o imóvel não for de nenhum destes órgãos, a usucapião segue; se for, a usucapião extrajudicial é enviada ao Judiciário, para ser resolvida por lá.
Etapa registral 5: notificação do Ministério Público
O artigo 178 do Código de Processo Civil obriga a intimar o Ministério Público para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam interesse público ou social, interesse de incapaz e/ou litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana.
Por precaução, em alguns Estados, os códigos de normas e procedimentos extrajudiciais exigem, obrigatoriamente, análise da usucapião extrajudicial pelo Ministério Público.
Esta exigência não está prevista nem no Provimento CNJ 65/2017 , nem no Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial , mas é precaução necessária.
Alguns casos em que a participação do Ministério Público faz sentido:
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Usucapião de imóvel próximo a áreas de conservação, áreas de proteção ambiental, áreas de proteção permanentes, reservas extrativistas e similares;
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Usucapião de imóvel decorrente de ocupação coletiva;
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Usucapião de imóvel tombado pelo patrimônio histórico;
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Usucapião de imóvel de forma coletiva.
Se estiver tudo OK, a usucapião segue; se o Ministério Público encontrar algum problema, pode indicar medidas para regularizar a situação, pode encaminhar a usucapião ao Judiciário ou (a depender da gravidade) pode mandar parar a usucapião aqui mesmo.
Etapa registral 6: notificação de terceiros interessados
Para confirmar que a usucapião está correta, o cartório de imóveis manda publicar em jornal de grande circulação um edital explicando que o imóvel está sendo objeto de usucapião, e dá prazo para que pessoas interessadas venham até o cartório se pronunciar.
Esta publicação pode ser substituída por um sistema eletrônico de editais , que, para efeitos jurídicos, tem o mesmo valor que uma publicação em jornal.
Se alguém contestar a usucapião, o cartório tenta mediar; se não conseguir, encaminha-a para continuar no Judiciário. Se ninguém contestar, a usucapião segue.
Etapa registral 7: diligências para tirar dúvidas
Se mesmo depois de todas as precauções o cartório entender que existem pontos mal explicados, pode ir até o imóvel, exigir que apresentemos novas provas, etc.
Mais uma vez, é aqui onde o trabalho do advogado mostra seu valor. Se a fase preparatória foi realizada com a técnica adequada, e com a sensibilidade para antecipar dificuldades nas fases notarial e registral, não haverá dúvidas a tirar, e a usucapião segue seu curso até o final.
Entretanto, como cada cabeça é um mundo, é importante manter esta etapa sob monitoramento. Cabe ao advogado, preventivamente, dialogar com o cartório de registro de imóveis para evitar surpresas, atendendo às exigências antes mesmo que se façam necessárias.
Etapa registral 8: procedimento de justificação administrativa
Se o cartório entender, mesmo depois das diligências, que a documentação apresentada ainda não é suficiente para provar a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, abrirá um procedimento de justificação administrativa, que seguirá o rito da produção antecipada de prova previsto nos artigos 381 a 383 do Código de Processo Civil .
Este é mais um exemplo da importância da fase preparatória. Uma usucapião extrajudicial bem preparada não deixa dúvidas a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, porque é levada ao tabelionato de notas e ao cartório de registro de imóveis já com todas as provas possíveis sobre estes assuntos.
Etapa registral 9: eventual suscitação de dúvida registral
Ninguém quer suscitar dúvida registral.
O advogado não quer, porque é um serviço extra causado, na maioria dos casos, por falhas na fase preparatória ou por falta de diálogo adequado com o cartório de imóveis durante a fase registral. Suscitar dúvida registral, em certas circunstâncias, é um reconhecimento de sua própria incompetência.
O cartório de imóveis não quer, porque retarda o serviço. Cartórios e tabelionatos, no Brasil, são serviços concedidos à iniciativa privada, não órgãos públicos. Vivem de prestar rapidamente o serviço a que se dedicam. Embora tenham, entre outros deveres, a obrigação de zelar pela integridade dos registros e legalidade dos procedimentos, precisam de que os procedimentos terminem rápido, para assim receberem os emolumentos e custearem sua operação. Quanto mais rápido termina uma usucapião, melhor para o cartório.
O Judiciário não quer, porque é mais um processo para engordar as estatísticas e acumular na fila de julgamentos. A usucapião extrajudicial surgiu justamente para desafogar o Judiciário de processos; a suscitação de dúvida registral é exatamente o contrário, pois é um processo novo, aberto porque não foi possível resolver pelo diálogo alguma questão entre o cartório de imóveis, o advogado responsável pela usucapião e a pessoa interessada no imóvel. Além disso, tirando as comarcas maiores onde existem varas especializadas em registros públicos, a dúvida registral cai nas mãos de um juiz de vara cível, ou mesmo num juiz de vara única, cuja sobrecarga é ainda mais grave. Nestas varas menos especializadas, é menos provável que os juízes conheçam o suficiente as especificidades do Direito Registral, criando assim problemas de difícil solução.
A pessoa interessada não quer, porque adia a usucapião do imóvel. Simples assim.
Especialistas como André Abelha e Eduardo Moreira Reis chegam ao ponto de falar da dúvida registral como um “gargalo” a ser “superado” na usucapião extrajudicial.
Entretanto, há situações em que as divergências de interpretação quanto a certos fatos, provas ou legislação são tão grandes, e de tão difícil solução, que a suscitação de dúvida registral é o único caminho, infelizmente.
Não cabe explicar detalhadamente como funciona a suscitação de dúvida registral; basta dizer, em resumo, que o processo é aberto quando o cartório, ao receber um pedido de averbação de um documento na matrícula de um imóvel, faz uma solicitação que o advogado considera ilegal, injustificada, impossível ou muito difícil de atender, excessiva, desmotivada, ou qualquer outro motivo que o leve a não se conformar. Quando isso acontece, o advogado pede ao oficial registrador que leve a dúvida a um juiz; se o oficial registrador se recusar, o advogado apresenta a dúvida a um juiz por contra própria (numa suscitação de dúvida reversa ou inversa). O juiz decide o caso.
É raríssimo, quase improvável, que surjam numa usucapião extrajudicial bem preparada exigências capazes de motivar a suscitação de dúvida registral. Todo o procedimento tem requisitos legalmente definidos, simples de atender, com pouquíssima margem para interpretações duvidosas. Além disso, se conduzido da forma apropriada, sem espírito de animosidade e com muito diálogo, a usucapião extrajudicial é um processo colaborativo, com pouquíssimas chances de controvérsia.
Mesmo assim, é importante manter esta etapa sob monitoramento, porque um evento raro não é um evento impossível, e a suscitação de dúvida registral poderá ser necessária.
Etapa registral 9: averbação da usucapião na matrícula do imóvel
Se a usucapião chegou até aqui, é porque tudo correu bem.
O último passo do procedimento é a averbação da usucapião na matrícula do imóvel, que deve ser feita pelo cartório de imóveis.
Se necessário, o cartório poderá recomendar outras providências necessárias à total regularização da documentação do imóvel, como abertura de nova matrícula, instituição de condomínio, desmembramento, amembramento, retificação de limites, etc. Estes procedimentos podem ser feitos ao mesmo tempo que a usucapião, mas são procedimentos separados.
A boa técnica recomenda ao advogado identificar, já na fase preparatória, quais procedimentos podem ser necessários na fase registral junto com a usucapião, para que, em diálogo com o cartório de imóveis, decidam qual o melhor momento para iniciá-los.
Conclusão
Em síntese, a eficácia do procedimento de usucapião extrajudicial repousa de maneira crucial na fase preparatória, na qual o advogado desempenha um papel fundamental. Nesse estágio, a construção estratégica em conjunto com o cliente e a indicação das provas a serem produzidas revelam-se determinantes para o sucesso da empreitada. A atenção meticulosa à fase preparatória não apenas viabiliza a transição suave para a fase notarial, na qual o tabelionato de notas confirma e certifica os fatos atinentes à posse ad usucapionem, mas também atua como um anteparo essencial contra possíveis reviravoltas desfavoráveis na fase registral.
É na fase registral que o cartório de imóveis realiza uma análise minuciosa das provas apresentadas, antes de notificar as instâncias pertinentes. A prevenção de surpresas desagradáveis nessa etapa é diretamente proporcional à diligência exercida na fase preparatória. O advogado, como condutor expert, assume a responsabilidade de articular habilmente os elementos probatórios, fomentar o diálogo com as partes envolvidas, e empregar suas competências analíticas, argumentativas e de convencimento de maneira intensiva.
Destarte, é indubitável que o sucesso do procedimento de usucapião extrajudicial está intrinsecamente vinculado à competência do advogado como guia hábil em todo o percurso. Sua participação estratégica desde o planejamento até a conclusão do processo ressalta não apenas a importância de suas habilidades técnicas, mas também a sua capacidade de assegurar que a justiça seja alcançada de maneira eficaz e equitativa. Assim, a condução eficiente e perspicaz do advogado no contexto da usucapião extrajudicial não apenas valida, mas enaltece, a contribuição essencial desse profissional na promoção da justiça e na proteção dos direitos dos cidadãos.
Num contexto jurídico onde a conquista da propriedade por meio da usucapião extrajudicial demanda uma meticulosa preparação legal, o advogado emerge como o fio condutor que tece a trama entre estratégia, diálogo e prova.
Do intricado processo preparatório à análise pormenorizada no tabelionato de notas e no cartório de imóveis, o advogado se destaca como o arquiteto que molda o sucesso desse empreendimento legal. Sua habilidade em antecipar desafios, articular argumentos persuasivos e conduzir com destreza as nuances do procedimento não apenas valida, mas eleva o valor intrínseco de sua atuação na condução de uma usucapião extrajudicial.
Nesta jornada jurídica, o advogado não é apenas um defensor ou um especialista em burocracia, mas o estrategista que harmoniza os elementos para a conquista legítima dos direitos de propriedade.