Contribuição para a história normativa da arrecadação de bens vagos no Direito brasileiro
7 Jan 2025 · Tempo de leitura: 27 minuto(s)Bem vago é o nome jurídico da coisa sem dono. Também é conhecida pela expressão latina res nullius, ou seja, coisa de ninguém. Arrecadação de bens vagos é o procedimento pelo qual é permitido ao Poder Público pegar para si qualquer bem que, comprovadamente, não tenha dono.
Em outro artigo , apresentamos a arrecadação de bens vagos como ferramenta útil para lidar com o problema dos vazios urbanos em áreas centrais (históricas ou não).
Naquele artigo, indicamos que existem juristas em nossos tempos que – com pouca base na História do Direito, interessados (com razão) em dar maior legitimidade ao procedimento e pretendendo vinculá-lo (com ainda maior razão) à pauta da justiça fundiária (reformas urbana e agrária) – associam a arrecadação de bens vagos à função social da propriedade.
De fato, pelo que está nos incisos XXII e XXIII do artigo 5º da Constituição Federal, no Brasil o direito à propriedade é garantido, mas a propriedade deve atender à sua função social. (A função social da propriedade, aliás, está nas constituições brasileiras desde pelo menos a Constituição de 1934; não se pode dizer que “antigamente não era assim”.)
Do nosso ponto de vista, é preciso entender a arrecadação de bens vagos em contexto histórico. O primeiro passo para isso é situá-la no tempo, usando a mais evidente fonte histórica para o entendimento das instituições jurídicas: as próprias normas jurídicas que as constituem.
Nossa pequena contribuição à história normativa da arrecadação de bens vagos no Direito brasileiro pretende traçar uma espécie de “árvore genealógica” do atual marco jurídico da arrecadação de bens vagos, radicando-o numa longa tradição de normas que recua até a Idade Média europeia e, com certas cautelas, pode mobilizar até certas regras do Direito Romano em seu favor. Enquanto simples “árvore genealógica”, não pretende esgotar o tema; propõe-se apenas a satisfazer a curiosidade de alguns, e ajudar pesquisadores em busca de certas normas jurídicas de interesse às suas próprias pesquisas. É apenas uma pequena e modesta contribuição à História do Direito no Brasil.
A disputa em torno dos bens comuns na Europa medieval
A criação do procedimento de arrecadação de bens vagos é muito, mas muito anterior aos primeiros debates sobre a função social da propriedade impulsionados principalmente pelo jurista positivista francês Léon Duguit em sua obra de 1912, Les transformations générales du droit privé depuis le Code Napoléon .
Enraíza-se historicamente numa longa disputa em torno da propriedade dos chamados bens comuns, que atravessou toda a Idade Média europeia e da qual se vê um pálido reflexo na existência dos chamados bens de uso comum do povo na classificação de bens públicos do artigo 99 do Código Civil brasileiro e na persistência do uso comunitário da terra como nos fundos e fechos de pasto na Bahia (Brasil) e nos baldios de Portugal .
Arraia-miúda disputa bens comuns contra senhores
Naquele tempo, esses bens comuns – que certas modas intelectuais agora chamam de commons – eram muito disputados.
De um lado, a arraia-miúda (o “povão”) via neles possibilidades de uso coletivo (pastagem, lenha para corte, frutas para colher, etc.) livres das taxas e obrigações impostas pelos senhores.
Do outro lado, os senhores; num tempo em que o poder político era mais um poder pessoal que um exercício de função pública, esses senhores viam nesses bens apenas a possibilidade de aumentar seus patrimônios, e de restringir as possibilidades de a arraia-miúda usar qualquer bem sem pagar taxas ou se ver obrigada a cumprir certas obrigações.
Esta disputa tinha escala local, e cada lado da contenda legitimava-se de modo diferente: enquanto os citadinos e aldeães mobilizavam o costume de que determinada área de terra vinha sendo usada de modo comum por gerações, os senhores (pequenos ou grandes, tanto faz) mobilizavam em seu favor o direito romano – especialmente as Institutiones (livro 2, título 1) e os Digesta (livro 41, título 7) .
Não pretendo avançar muito em assunto onde medievalistas estão muito mais à vontade; apenas traço linhas gerais desse conflito para situar a origem das normas mencionadas a seguir.
Reflexos dessa disputa sobre as Ordenações portuguesas
Em Portugal, a disputa entre arraia-miúda e senhores em torno dos bens comuns encontrou reflexo na longa tradição de ordenações mandadas fazer pelos sucessivos reis portugueses, em especial depois de Duarte I de Portugal.
Ordenações Afonsinas: o começo
No que diz respeito aos bens vagos mais especificamente, a previsão legal é antiquíssima: vem desde as Ordenações Afonsinas de 1448, que citamos extensamente com seu fundamento (em grafia atualizada) por ser, talvez, a primeira norma a tratar explicitamente da arrecadação de bens vagos no direito português:
O Rei meu senhor, e Pai de gloriosa memória, fez uma Lei, de que o teor tal é
1. Nós, Dom Duarte, pela graça de DEUS Rei de Portugal, do Algarve e Senhor de Ceuta. Conhecendo como não tão somente por Lei santa, mais ainda por Lei Natural, de que as gentes movidas por natural igualdade geralmente usam, ante todas as coisas outras somos em especial obrigados ao Nosso Senhor DEUS, de cuja mão e encomenda temos a governança, e regimento destes Reinos, de os acrescentar, e ainda requerer os Direitos Reais, e rendas deles, quanto em Nós bem for, a todo nosso Real, e verdadeiro Poderio, porque sendo justamente requeridos, e conservados em seu ser, os nossos naturais serão por ele revelados d’outros muitos encarregos, que os Reis de longo tempo, segundo direito, e usança geralmente aprovada, acostumaram de encarregar os seus Povos em tempo de suas necessidades; e quando os Direitos Reais fossem minguados por míngua de bom requerimento, necessariamente conviria aos Reis de encarregar seus Povos d’outros encarregos ilícitos sem urgente necessidade, o que ante DEUS lhe seria contado por grande culpa.
2. E portanto desejando Nós de ser desencarregado de tal obrigação, Mandamos ao Doutor Rui Fernandes do nosso Conselho, que provesse as Leis Imperiais, e quaisquer outros Direitos, assim Canônicos como Civis, para que pudesse ter em conhecimento todos os verdadeiros Direitos Reais, que à Coroa do Reino pertencem, e por direito lhe são realmente devidos para a conservação do seu Real Estado, em tal guisa, que por seu bom encaminhamento pudéssemos ser certamente informados de como se houvessem de arrecadar; o qual com estudo deliberado nos deu uma declaração, segundo achou por Direito, nesta forma, que se segue.
3. Disseram as Leis Imperiais que Direito Real é (…)
…e segue-se longa lista dos “direitos reais”, hoje conhecidos como direitos régios.
Chama a atenção, em primeiro lugar, que Duarte I de Portugal afirma tanto a origem divina de seu poder (…pela graça de DEUS Rei…), quanto sua origem consuetudinária (…os nossos naturais serão por ele revelados d’outros muitos encarregos, que os Reis de longo tempo, segundo direito, e usança geralmente aprovada…).
A origem consuetudinária dos direitos régios tem nas Ordenações Afonsinas um contraponto: sobrecarregar o povo com “encarregos ilícitos” seriam “ante DEUS […] contado por grande culpa”. Restaria saber, mais concretamente, quem era este “povo” a que Duarte I se referia – mas esta não é tarefa deste artigo.
O texto de certos trechos desses “direitos reais” previstos nas Ordenações Afonsinas – hoje conhecidos como “direitos régios” – simplesmente traduz para o português, quase palavra por palavra, o texto das Institutiones referentes aos bens comuns. Em termos atuais, seria algo como uma lista de competências do Estado, onde se diz o que o soberano “pode” e o que “não pode” fazer.
Na lista aparecem “direitos” como nomear funcionários públicos, fazer moeda, cobrar pedágio, etc. Estes “direitos régios” evidenciam a solução jurídica para disputa sobre quem é dono dos bens comuns: estradas, ruas públicas, rios, animais selvagens, portos, prédios de órgãos públicos, todos os bens comuns foram considerados como parte do patrimônio real, ainda que fossem usados por todos como bens comuns.
Lá no décimo segundo lugar da lista de direitos régios, aparece o direito de trazer para o patrimônio real…
12. Todos os bens vagos, a que não é achado certo Senhor. (Ord. Afons., livro 2, título XXIV, parágrafo 12 , em grafia atualizada)
Ou seja: no contexto de um conflito entre arraia-miúda e senhores, aparece o rei como primus inter pares e arroga para si o direito de apropriar-se tanto dos bens comuns quanto dos bens vagos. Nenhum bem é propriamente “de ninguém”, pois o soberano reclamou para si os bens que, de outro modo, poderiam desde ser submetidos a um uso comunitário, quanto outros de propriedade incerta.
Sobre certa natureza de conquista por trás da arrecadação de bens vagos, vale apresentar uma observação, hoje muito curiosa, retirada da Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas:
Bens vagos, de que não é achado senhor certo (palavras da cit. Ord. L. 2°T. 26 § 17) fazem parte da grande classe dos bens sujeitos ao — dominio casual —; á saber (Dicc. Jur. de Per. e Souz.), o que acontece ao Rei (hoje ao Estado) por direito de conquista, ou por adquisição. Vid. Not. ao Art. 884 infra. Oppõe-se o domínio casual ao domínio fixo, que é o antigo domínio do Patrimônio de Rei (hoje do Estado). Para Portugal a descoberta do Brazil deu-lhe sobre o território conquistado um domínio casual. Para nós Brazileiros o território nacional (Art. 2° da Const.) deu ao Estado um domínio fixo.
Ordenações Manuelinas e Filipinas: continuidade
A regra das Ordenações Afonsinas sobre arrecadação de bens vagos para o patrimônio do rei foi copiada literalmente por outra, das Ordenações Manuelinas de 1514 ( livro 2, título XV, parágrafo 16 , em grafia original):
6. Dereito Real he poder o principe tomar (…) 16. todos os bens vaguos, a que nom he achado certo senhorio.
Por meio dessa, chegou-se à regra das Ordenações Filipinas de 1595 ( livro 2, título XXVI, parágrafo 17 , na grafia da versão comentada por Cândido Mendes de Almeida):
7. Dereito Real he poder o principe tomar (…) 16. E todos os bens vaguos, a que nom he achado certo senhorio.
As Ordenações Filipinas vigeram (naquilo em que legislação posterior não a revogou) até 1867 em Portugal e até 1916 no Brasil.
Novamente: não se pretende, aqui, examinar em profundidade os usos da arrecadação de bens vagos em cada contexto histórico nos séculos transcorridos desde sua criação. Nesta “genealogia das normas”, quisemos apenas demarcar de onde veio a arrecadação de bens vagos, qual o lugar no tempo e no espaço onde ela surgiu, e como seus contornos e limites foram sendo alterados até chegarem às suas formas atuais.
Normas sobre arrecadação de bens vagos no Direito brasileiro
Como o reinado de Duarte I de Portugal se deu entre 1433 e 1438, e o primeiro reinado de seu sucessor Afonso V de Portugal se deu entre 1438 e 1477, pode-se dizer com alguma segurança que o direito à arrecadação de bens vagos existe no Direito português desde a primeira metade do século XV; com a colonização portuguesa, foi implementado no território que viria a formar o Brasil.
Com a independência, Pedro I preferiu manter em vigor no Brasil as leis portuguesas listadas num anexo da Lei de 20 de outubro de 1823 , ao menos enquanto novas leis não eram promulgadas. As Ordenações Filipinas, portanto, foram a primeira referência de regras jurídicas a tratar da arrecadação de bens vagos.
A partir dela, podemos traçar uma história normativa da arrecadação de bens vagos no Direito brasileiro – ou seja, uma simples apresentação de normas, uma listagem, um arrolamento, que pode contribuir para uma história mais completa deste instituto, ou mesmo para outras pesquisas historiográficas onde a arrecadação de bens vagos tenha alguma importância.
O Aviso 245, de 10 de novembro de 1853
Durante o Império, a arrecadação de bens vagos tinha certa importância: os bens de ordens religiosas que se extinguiam eram disputados pelas províncias como bens vagos, fato bastante discutido no Aviso 245, de 10 de novembro de 1853, que transcrevemos a seguir na íntegra por se tratar de documento de difícil busca (ainda que as coletâneas de leis do Império já se encontrem integralmente disponíveis na internet no site da Câmara dos Deputados ):
Illm. e Exm. Sr. – Recebi o Officio de 5 de Outubro ultimo, sob nº 48, em que V. Ex. dá conta de haver ordenado ao Procurador Fiscal, que procedesse na forma da Lei para evitar o extravio dos bens do patrimônio do Convento do Carmo da Cidade de Olinda, por lhe constar que o respectivo Prior estava vendendo alguns dos ditos bens que não podem ser alienados sem a competente licença; e em resposta tenho de declarar a V. Ex. que he mister proseguir-se nos termos e mais deligencias necessarias para segurança da Fazenda Publica; e verificado o abandono ou extinção de facto da Communidade e administração do Convento, proceder-se na conformidade da Legislação em vigor sobre bens vagos para serem incorporados ao domínio do Estado.
E porque possa succeder que appareça legitimo administrador, ou que o suposto abandono ou extincção ne não tenha verificado, ou se verifique, sendo certo que ha dessipação de bens com o fim de frustrar o direito eventual da Fazenda Publica, cumpre que se inventariem e arrolem todos os bens, direitos e acções, para prevenir-se o descaminho delles; e reconhecendo-se que sobre alguns bens se derão contractos aleatorios, cumpre igualmente que se providencie de modo que se observem as disposições da Lei de 9 de Novembro de 1830, tanto nos referidos contractos como nos onerosos, e não só a respeito dos immoveis como a respeito dos moveis e semoventes.
E por esta occasião julgo conveniente declarar outrosim a V. Ex., para remover futuras questões, que os bens dos Conventos e Communidades religiosas que se extinguem não pertencem á Fazenda Provincial, nem as Assembléas Proviciaies são competentes para legislar sobre taes bens. Pelo Acto Addicional á Constituição do Imperio só compete áquellas Assembéas legislar sobre as Corporações, e não dar destino aos seus bens, como já foi declarado pela Resolução de 14 de Outubro de 1836; nem favorece a intelligencia contraria o argumento que se pretenda deduzir da Lei que attribuio ás Provincias a renda do “evento”, por quanto supposto na expressão generica de “bens vacantes”, ou na disposição igualmente genérica da Ord. L. 2º Tit. 26 § 17 “bens a que não é achaco senhor certo”, estejão comprehendidos os denominados “do evento”, todavia differenção-se estes das mais especies de bens vagos, como o revelão tambem as proprias palavras de que se usa “bens do evento”.
Na verdade os bens das Corporações religiosas extinctas estão nos mesmos termos dos das pessoas que morrem sem descendencia, e sobre que não houve disposição testamentaria; por outro lado, alguns ha que podem mesmo ter a natureza de Capellas vagas, sendo o resultado de doações sob condições inherentes a Capellas, as quaes pelo correr do tempo, e pela força e influencia das Ordens monasticas passarão desapercebidos, convertendo-se no patrimonio das Ordens, sem que se tivesse attenção alguma ao seu fim e onus; outros são o effeito de doações Regias, de infracções e dispensas das Leis da amortisação, muitos do esbulho e usurpações; ou de legados e heranças indevidas, e grande parte finalmente de dons dos fieis para a sustentação do Culto divino; não se podendo por tanto capitular sob a denominação de bens do “evento”;
E ainda que se considerem os bens em questão como bens “pro derelicto”, nem por isso se confundirão com os do evento: – estes são aquelles de que trata a Ord. do L. 3º Tit. 94, que sem dono andão vagando de huma para outra parte, ou mudando como o mesmo vento muda, donde lhe vem a denominação; distinguindo-se assim dos bens propriamente perdidos, e que se achão, que tem por consequencia senhor; e pois ainda que senhor certo não lhe seja achado, ainda que se considerem também “inventos” não se podem todavia reputar do “evento” ou “do vento” conforme a phrase antiga e da Ordenação; sendo vagos, que não pertencem á Fazenda Provincial segundo a Legislação em vigor.
Deos Guarde a V. Ex. Palacio do Rio de Janeiro em 10 de Novembro de 1853 – Visconde de Paraná, Sr. Presidente da Provincia de Pernambuco.
No que diz respeito aos bens vagos, o Aviso 245/1853 foi mera interpretação de suas regras. Espécie de “súmula vinculante”, os avisos não substituíam normas jurídicas cogentes, apenas indicavam como a Corte (por seus ministérios) as interpretavam.
Deste modo, ainda em meados do século XIX, as velhas Ordenações Filipinas continuavam a ditar como se dava a arrecadação de bens vagos no Brasil.
O Decreto 2.433/1859
As regras das Ordenações Filipinas sobre arrecadação de bens vagos só vieram a ser substituídas no Brasil pelo Decreto 2.433, de 15 de junho de 1859 , que colocou os bens vagos na mesma categoria que as heranças jacentes e as heranças de pessoas ausentes e definiu o que se poderia entender como bens vagos no Direito brasileiro de então:
Art. 11. São bens vagos que, na conformidade das Leis vigentes se devolvem à Fazenda Nacional:
- Os moveis e de raiz a que não he achado senhorio certo.
- Os bens de intestado que não deixarem parentes ou conjuge herdeiros, nos termos de direito, ou dos fallecidos com testamento ou sem elle, cujos herdeiros, mesmo ab intestato repudiarem a herança.
- Os denominados do evento no Município da Corte.
- O producto de todos os predios e quaesquer bens vagos ou heranças jacentes, ainda litigiosas, que por falta de senhores ou herdeiros certos se devolvem ao Estado.
- Todas as embarcações ou navios que se perderem ou derem à costa nas praias do Imperio e seus carregamentos, sendo de inimigos ou corsarios, salvo accordo ou convenção em contrario.
Art. 12. Todos estes bens se devem arrecadar, inventariar, avaliar e arrematar, recolhendo-se o producto aos cofres publicos, na conformidade deste Regulamento. Todavia, se algum ou alguns destes bens forem proprios para o serviço do Estado, o Governo, pelo Ministerio da Fazenda, poderá ordenar que não sejão arrematados, para destinal-os ao referido serviço.
Arrematar, aqui, é a mesma coisa que leiloar. Pelo sistema do Decreto 2.433/1859, portanto, os bens vagos deveriam ser arrecadados (ou seja, incorporados ao patrimônio real), inventariados (ou seja, listados como parte do patrimônio real), avaliados (ou seja, ter seu valor estabelecido) e arrematados (ou seja, vendidos em leilão).
A arrecadação de bens públicos, portanto, era uma forma de municípios, províncias e a própria Coroa conseguirem dinheiro; a exceção era a destinação de certos bens ao serviço público, se para isso fossem úteis.
(“Bem do evento” é expressão que causa estranhamento em alguns. Desde pelo menos as Ordenações Alfonsinas, “bem do evento” era gado achado sem se saber de quem era; em tempos de escravidão, essa categoria de “achados e perdidos” incluía também pessoas escravizadas. Havia um procedimento especial para lidar com “bens do evento”, seja devolvendo-as aos donos que provassem sê-lo, seja transferindo-as ao patrimônio público depois de certo prazo sem que o dono aparecesse. A expressão “bens do evento” entrou em desuso, mas ainda aparece em algumas normas, como no art. 17 da Constituição do Estado do Piauí de 1989. O procedimento de restituição do “bem do evento” a seus donos deu origem à descoberta, atualmente regulamentada pelos artigos 1.233 a 1.237 do Código Civil .)
A Consolidação das Leis Civis, de Teixeira de Freitas
Embora não valesse como lei propriamente dita, a Consolidação das Leis Civis de Augusto Teixeira de Freitas , publicada em três edições (1859, 1865, 1876), era tratada por operadores do direito no Império como se tivesse força legal, pois facilitava a consulta à legislação ao reunir num só lugar, de modo extremamente sistemático, toda a legislação civil espalhada em inúmeras ordenações, leis, decretos, avisos, etc.
Na Consolidação, os bens vagos perderam este nome, passando a serem chamados por Teixeira de Freitas de bens a que não é achado senhorio certo (como nas velhas Ordenações Filipinas), e foram categorizados como “cousas do domínio do Estado” (Consol. L. Civ., artigo 52, § 2º :
Art. 52. São do domínio nacional: § 1.° As cousas do uso público, como estradas, e ruas públicas; rios navegáveis, e de que se-fazem os navegáveis, se são caudaes, que corrão em todo o tempo; e igualmente os portos de mar, onde navios costumão ancorar; § 2.º As cousas do dominio do Estado, como ilhas adjacentes mais chegadas ao território nacional, terrenos de marinhas, mares interiores além do ponto, onde as marinhas terminão; quaesquer accumulações de terras casuaes, ou artificiaes, que assentão sobre o fundo do mar, terras devolutas, minas e terrenos diamantinos, páo-brazil, bens á que não é achado senhorio certo; os do evento; aquelles, cujo dono falleceu sem testamento, não deixando parentes até o décimo gráo segundo Direito Civil; ou com testamento, se os herdeiros repudião a herança; todas as embarcações, que se-perdêrem, e dérem á costa nas praias do Império; e seus carregamentos, sendo de inimigos, ou corsários; e os próprios nacionaes; § 3.º Os bens da Coroa, á saber: palácios, terrenos nacionaes, e construcções, que perlencem ao Imperador, e á seus successôres.
As categorias dos “bens do domínio nacional” se assemelham, um tanto de longe, à atual categorização de bens públicos em bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens dominicais; diferentemente da classificação dos bens feita por Teixeira de Freitas, entretanto, a atual classificação não pretende ser abrangente, apenas exemplificativa.
Repita-se, entretanto, que a Consolidação de Teixeira de Freitas não era norma jurídica, mas ao mesmo tempo sistematização de normas existentes – porque o texto vinha recheado de notas de rodapé onde Teixeira de Freitas indicava o fundamento legal da “norma” que propunha na Consolidação – e fonte doutrinária – porque as notas de Teixeira de Freitas vinham frequentemente acompanhadas por comentários hermenêuticos valiosíssimos. Foi encomendada pelo Império como etapa preparatória à redação de um código civil que Teixeira de Freitas chegou a preparar em rascunho, mas nunca foi aprovado (provavelmente por caprichos de sua personalidade muito idiossincrática).
O Código Civil de 1916 (Lei 3.071/1916)
Quase cinquenta e sete anos depois do Decreto 2.433/1859, o Código Civil (Lei 3.071/1916) revogou todas as ordenações, alvarás, leis, decretos, resoluções, usos e costumes que tratassem dos assuntos de Direito Civil por ele regulados, substituindo a regulação extensa da arrecadação de bens vagos do Decreto 2.433/1859 por uma menção tímida ao assunto:
Art. 589. Além das causas de extinção consideradas neste Código, também se perde a propriedade imóvel: I - pela alienação; II - pela renúncia; III - pelo abandono; IV - pelo perecimento do imóvel. § 1º Nos dois primeiros casos deste artigo, os efeitos da perda do domínio serão subordinados a transcrição do título transmissivo, ou do ato renunciativo, no registro do lugar do imóvel. § 2º O imóvel abandonado arrecadar-se-á como bem vago e passará, dez anos depois, ao domínio do Estado, onde se acha, ou da União, se estiver no Distrito Federal ou em território não constituído em Estado.
Clóvis Beviláqua , autor do anteprojeto do Código Civil de 1916, nessa muito magra regulação introduziu inovações importantes na arrecadação de bens vagos:
- “Bens vagos”, agora, eram apenas os imóveis abandonados, não mais as coisas com dono incerto.
- As coisas “achadas e perdidas” foram excluídas da categoria dos bens vagos, sendo agora submetidas aos procedimentos da chamada invenção (arts. 607 a 610).
- Embora imóveis pudessem ser arrecadados como bens vagos, só depois de dez anos desde sua arrecadação teriam sua propriedade definitivamente incorporada ao patrimônio estatal.
- Nem uma só linha foi dedicada a descrever como se faria a arrecadação, ou a incorporação.
Esta regulação muito magra fazia sentido: enquanto a Consolidação e o Esboço de Código Civil de Teixeira de Freitas eram extremamente meticulosos (ao ponto da desnecessária prolixidade), ao redigir seu anteprojeto do Código Civil Clóvis Beviláqua fez o possível para manter os artigos curtos e sintéticos, deixando certos detalhamentos em aberto à interpretação (e legislação) posterior.
Beviláqua também tomou o cuidado, conforme o desenvolvimento do processo civil na época, de separar direito material e direito processual, deixando questões procedimentais para a legislação estadual (antes do Código de Processo Civil de 1939 , os códigos de processo civil eram estaduais). É possível, por isso, que o procedimento para a arrecadação tenha sido excluído do Código Civil; como não conseguimos cópias dos códigos de processo civil estaduais, porque muito raros (e caros) em cópia física e infelizmente ainda indisponíveis na internet, não pudemos confirmar esta hipótese antes do fechamento deste artigo.
Além disso, no velho Código Civil de 1916 deixou de existir a obrigação de vender bens vagos depois de sua arrecadação, ou de usá-lo no serviço público. Eles passaram a ser simplesmente incorporados ao domínio do Estado ou da União; que os governantes decidissem o que fazer com eles.
A Lei da Usucapião Especial Rural (Lei 6.969/1981)
E assim ficou a arrecadação de bens vagos no ordenamento jurídico brasileiro até que o artigo 10 da Lei da Usucapião Especial Rural (Lei 6.969/1981) mudou a redação do § 2º do artigo 589 do Código Civil para sua última versão antes da atual e reduziu de dez para três anos o prazo da arrecadação de bem vago em zona rural:
Art. 589. Além das causas de extinção considerada neste Código, também se perde a propriedade imóvel: I. Pela alienação. II. Pela renuncia. III. Pelo abandono IV. Pelo perecimento do imóvel. § 1º Nos dois primeiros casos deste artigo, os efeitos da perda do domínio serão subordinados à transcrição do título, ou do ato renunciativo, no registro do lugar do imóvel. § 2º O imóvel abandonado arrecadar-se-á como bem vago e passará ao domínio do Estado, do Território ou do Distrito Federal se se achar nas respectivas circunscrições: a) 10 (dez) anos depois, quando se tratar de imóvel localizado em zona urbana; b) 3 (três) anos depois, quando se tratar de imóvel localizado em zona rural.
É evidente que os militares então – ilegitimamente – no governo pretendiam usar a arrecadação de bem vago como instrumento não de reforma agrária, mas de simples arrecadação de terras para colonização, seguindo sua política de ocupação da Amazônia e do cerrado por colonos (a quem seriam destinadas as piores terras) e pelo agronegócio, com resultados desastrosos em termos ambientais – mas, novamente, essa é outra história, fora do alcance deste artigo.
Marco legal da arrecadação de bens vagos atualmente em vigor no Brasil
O marco legal da arrecadação de bens vagos é composto por por regras federais e municipais.
No âmbito federal, a arrecadação de bens vagos é disciplinada pelo Código Civil, (Lei 10.406/2002) e pela Lei de Regularização Fundiária (Lei 13.465/2017).
No âmbito municipal, cada município é responsável por fazer sua própria lei para disciplinar a arrecadação de bens vagos, desde que respeitem esses dois regramentos federais. Já existem leis sobre arrecadação de bens vagos em São Paulo (Lei Municipal nº 16.050/2014), Vitória (ES) (Lei Municipal nº 9.271/2018) e Porto Alegre (RS) (Decreto 19.622/2016) e Salvador (BA) ( Lei Municipal 8.553/2014 e Decreto Municipal 25.922/2015 ).
Por comodidade, trataremos apenas das normas federais.
Código Civil (Lei 10.406/2002)
O regramento no Código Civil está previsto no artigo 1.276:
Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.
§ 1º O imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize.
§ 2º Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais.
O Código Civil de 2002 trouxe algumas inovações ao instituto quase milenar da arrecadação de bens vagos:
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Reduziu para três anos do prazo para incorporação definitiva, aplicável tanto a imóveis urbanos quanto a rurais;
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Indicou explicitamente de critérios objetivos para descobrir a intenção de abandonar o imóvel (antes, tais critérios ficavam ao arbítrio de cada juiz nas ações arrecadatórias de bem vago);
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Incluiu municípios pela primeira vez como beneficiários da arrecadação de bens vagos, pois na Constituição de 1988 pela primeira vez os municípios passaram a ser entes federativos;
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Indicou a União como beneficiária da arrecadação de bens vagos rurais, conforme a federalização da questão agrária iniciada nos anos 1960.
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Estabeleceu de modo absoluto a presunção da intenção de abandonar o imóvel quando os critérios objetivos são provados – ou seja, esta intenção se demonstra independentemente de prova em contrário.
Mudanças em instituições jurídicas não devem, nunca, ser concebidas de modo cumulativo, como se as atuais representassem algum tipo de “progresso” frente às anteriores. A sucessão de normas não significa qualquer “progresso”, “avanço”, “evolução”, ou um rumo para o “bem” ou para o “mal”. Quer apenas dizer que umas normas vieram antes das outras; que existe uma sucessão temporal de normas; e que legisladores de épocas diferentes aproveitam e ajustam instituições jurídicas preexistentes para atingir as finalidades e objetivos do tempo em que vivem e atuam.
O que se evidencia com a regulamentação da arrecadação de bens vagos pelo Código Civil de 2002 é uma influência indireta do princípio da função social da propriedade inserido na Constituição de 1988.
tentativa de tornar menos subjetivos os seus pressupostos, para evitar que proprietários incapazes de dar função social a um imóvel possam se beneficiar de qualquer
Lei da Regularização Fundiária (Lei 13.465/2017)
Na Lei de Regularização Fundiária, a arrecadação de bens vagos é estabelecida como um instrumento para a regularização fundiária urbana (REURB):
Art. 15. Poderão ser empregados, no âmbito da Reurb, sem prejuízo de outros que se apresentem adequados, os seguintes institutos jurídicos: […] IV – a arrecadação de bem vago, nos termos do art. 1.276 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) ;
Além disso, a Lei de Regularização Fundiária estabelece regras gerais para que municípios regulamentem a arrecadação de bens vagos:
Art. 64. Os imóveis urbanos privados abandonados cujos proprietários não possuam a intenção de conservá-los em seu patrimônio ficam sujeitos à arrecadação pelo Município ou pelo Distrito Federal na condição de bem vago.
§ 1º A intenção referida no caput deste artigo será presumida quando o proprietário, cessados os atos de posse sobre o imóvel, não adimplir os ônus fiscais instituídos sobre a propriedade predial e territorial urbana, por cinco anos.
§ 2º O procedimento de arrecadação de imóveis urbanos abandonados obedecerá ao disposto em ato do Poder Executivo municipal ou distrital e observará, no mínimo:
I - abertura de processo administrativo para tratar da arrecadação; II - comprovação do tempo de abandono e de inadimplência fiscal; III - notificação ao titular do domínio para, querendo, apresentar impugnação no prazo de trinta dias, contado da data de recebimento da notificação.
§ 3º A ausência de manifestação do titular do domínio será interpretada como concordância com a arrecadação.
§ 4º Respeitado o procedimento de arrecadação, o Município poderá realizar, diretamente ou por meio de terceiros, os investimentos necessários para que o imóvel urbano arrecadado atinja prontamente os objetivos sociais a que se destina.
§ 5º Na hipótese de o proprietário reivindicar a posse do imóvel declarado abandonado, no transcorrer do triênio a que alude o art. 1.276 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) , fica assegurado ao Poder Executivo municipal ou distrital o direito ao ressarcimento prévio, e em valor atualizado, de todas as despesas em que eventualmente houver incorrido, inclusive tributárias, em razão do exercício da posse provisória.
Art. 65. Os imóveis arrecadados pelos Municípios ou pelo Distrito Federal poderão ser destinados aos programas habitacionais, à prestação de serviços públicos, ao fomento da Reurb-S ou serão objeto de concessão de direito real de uso a entidades civis que comprovadamente tenham fins filantrópicos, assistenciais, educativos, esportivos ou outros, no interesse do Município ou do Distrito Federal.
Conclusão
Em síntese, este artigo traçou a longa trajetória normativa que deu forma ao instituto da arrecadação de bens vagos no Brasil, desde as disputas medievais pelos bens comuns até o arcabouço legal contemporâneo. Vimos como, já nas Ordenações Afonsinas de meados do século XV, o soberano português se apropriou dos bens desprovidos de dono certo, processo que se perpetuou nas Ordenações Manuelinas e Filipinas e chegou às leis imperiais brasileiras (Aviso 245/1853, Decreto 2.433/1859). A Consolidação de Teixeira de Freitas e o Código Civil de 1916 refinaram categorias e prazos, enquanto a Lei de Usucapião Especial Rural (1981) e o Código Civil de 2002 reduziram o prazo e introduziram municípios como beneficiários. Por fim, a Lei de Regularização Fundiária (2017) inseriu o procedimento no âmbito da REURB, estabelecendo critérios e protocolos administrativos.
Algumas considerações gerais se impõem. Primeiro, a sucessão de normas não indica necessariamente “avanço” ou “retrocesso”, mas antes a adaptação de um mesmo instituto — a coleta de bens sem dono — às necessidades e valores de cada época. Segundo, a arrecadação de bens vagos revela uma tensão histórica entre propriedade privada e interesse público, tensionando o instituto jurídico da propriedade pela necessidade de uso comunitário ou estatal. Terceiro, o protagonismo crescente de municípios no ordenamento contemporâneo reflete a descentralização e a importância da gestão local de imóveis abandonados, sobretudo em contextos de vazios urbanos.
Por fim, espera-se que esta “árvore genealógica” normativa, embora modesta, ofereça subsídios para pesquisas futuras, seja para estudiosos de história do Direito, seja para gestores públicos interessados em políticas de regularização fundiária e combate ao abandono imobiliário. Em todos os períodos analisados, fica clara a centralidade do critério temporal e a permanência do debate sobre quem efetivamente deve usufruir, conservar ou alienar o que, juridicamente, não pertence a ninguém. Que este levantamento estimule novos olhares sobre as normas que, silenciosamente, moldam o uso e o destino dos espaços vazios em nosso país.