Pai ou mãe pode vender bens a filho? E a neto? E a outros descendentes?

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Esta é uma das perguntas mais comuns durante um planejamento sucessório. Se a venda ainda não foi feita, a resposta é simples, e é uma só; mas se a venda já foi feita, há detalhes muito sutis a conhecer para resolver a situação. Leia nosso artigo para conhecer a resposta e os detalhes!

Pai ou mãe pode vender bens a filho? E a neto? E a outros descendentes? Descrição: um homem negro, vestindo com paletó e gravata, segura um documento em mãos, enquanto é observado por outro homem negro, vestido com uma camisa social.

Por mais modesto que seja o patrimônio de alguém, é natural que quem o construiu queira tomar todos os cuidados para transmiti-lo a descendentes com a menor perda possível.

Pessoas mais experientes já sabem: mesmo este pequeno patrimônio (uma casa, uma roça, etc.) pode se tornar causa de brigas intermináveis durante a partilha.

Por isso, tentam a solução que lhes parece mais prática: doações, vendas e outras formas “simples” e “menos burocráticas”.

Acontece que planejar a passagem desse patrimônio para descendentes e sucessores não é atividade simples.

Há muitos detalhes jurídicos a considerar; cada um abre caminho diferente para o planejamento; os impostos mudam muito (para mais ou para menos) a depender do que se escolha; e há soluções simplesmente ilegais.

Neste artigo, falaremos de uma destas soluções ilegais: a venda de ascendente a descendente.

O que é a venda de ascendente a descendente?

É a venda de um bem ou direito a um comprador que é descendente do vendedor.

Descendente inclui filhos, netos, bisnetos, e todas as relações de parentesco em linha reta.

Mas atenção: existe uma definição legal dessas relações de parentesco. Se quiser conhecê-las mais aprofundadamente, com exemplos, clique aqui para ler nosso artigo sobre as regras de parentesco no Direito brasileiro.

Por que não se recomenda a venda de ascendente a descendente?

Porque o Código Civil diz que essa venda é anulável. Eis o que diz o artigo 496 do Código Civil :

Art. 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido.

Por ser anulável, a venda envolve o risco de algum outro descendente pedir judicialmente sua anulação, por não ter concordado com ela.

Certo, mas por que essa regra existe?

Por três razões:

Os herdeiros necessários, a herança legítima e sua proteção

Em geral, o que não se recomenda a venda de bens a herdeiros necessários, tal como definidos no artigo 1.845 do Código Civil :

Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

No Direito brasileiro, os herdeiros necessários têm direito a metade dos bens da herança, como estabelece o artigo 1.846 do Código Civil :

Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.

Quando alguém vende um bem a um de seus herdeiros necessários, a depender do tamanho do patrimônio pode acontecer de tirar dos demais herdeiros um pedaço daquilo a que teriam direito por herança.

Maior frequência da sucessão em linha reta

Está implícito na regra do artigo 496 do Código Civil que ela trata de ascendentes e descendentes diretos, em linha reta, sem intermediários vivos.

Quando a sucessão envolve colaterais (irmãos, tios, sobrinhos, primos, etc.), ou representantes de herdeiros falecidos, entram em jogo complexidades técnico-jurídicas que não cabe tratar neste artigo.

Nesta sucessão em linha reta, é muito mais frequente a venda de ascendente a descendente: por serem mais velhos, há maiores chances de ascendentes morrerem antes de seus descendentes.

(Sobre a diferença entre ascendentes, descendentes e colaterais, clique aqui para ler nosso artigo sobre as regras de parentesco no Direito brasileiro. )

Proteções aos quinhões dos herdeiros necessários

Levando em conta a alta frequência de casos de sucessão com transmissão de bens de ascendente para descendente em linha reta, os legisladores brasileiros resolveram protegê-la por vários modos.

Em primeiro lugar, estabeleceram que “pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança” (artigo 1.846 do Código Civil) . Como visto, esta reserva se chama herança legítima. Ela tem impactos muito sérios sobre o planejamento sucessório, mas não é assunto a ser tratado neste artigo.

Em segundo lugar, estabeleceram que bens doados por ascendente a descendente devem ser trazidos de volta para o cálculo da herança, para nivelar o valor dos quinhões de herdeiros. Este procedimento, chamado colação de bens, está disciplinado pelos artigos 2.002 a 2.012 do Código Civil, tem vários aspectos importantes num planejamento sucessório, causa muita briga entre herdeiros quando o planejamento sucessório foi mal organizado, mas também não é assunto a ser tratado neste artigo.

Por fim, como a venda de ascendente a descendente não é doação, os legisladores tornaram-na anulável sempre que os outros descendentes e o cônjuge do vendedor não houverem concordado explicitamente com a venda.

Desequilíbrio de quinhões e prevenção de conflitos

A proteção contra venda de ascendente a descendente que não conta com autorização dos demais descendentes foi criada, também, para evitar o desequilíbrio de quinhões e os conflitos que dele podem decorrer.

Imagine a situação em que Rosana vende sua casa a Robson, um de seus três filhos. A venda respeitou o valor de mercado.

No Direito Civil, existe uma classificação muito minuciosa dos bens que compõem um patrimônio. Interessante para quem estuda o assunto, esta classificação pode parecer inútil a pessoas leigas, mas tem efeitos drásticos.

Vamos destrinchar a venda, com os critérios de classificação de bens do Código Civil:

(Qualquer pessoa com alguma formação jurídica poderia questionar este exemplo, dizendo que os três filhos de Rosana deveriam prestar alimentos, que Rosana poderia cobrar os alimentos judicialmente, etc. Situações como a do exemplo, entretanto, são muito comuns na prática. É uma “bomba” que temos de “desarmar”.)

Rosana diminuiu muito o próprio patrimônio para custear seu tratamento.

Com isso, Reinaldo, Rildo e Renilson ficaram a ver navios, enquanto Robson garantiu maior estabilidade a seu patrimônio ao trocar um bem fungível (dinheiro) por um bem infungível (casa).

Há um evidente desequilíbrio entre Robson, Rildo e Renilson, que pode ser a causa de problemas familiares muito sérios.

Para evitar casos como este, os legisladores criaram a exigência de autorização prévia para a venda de ascendente a descendente.

Quer dizer, então, que pai e mãe não podem vender bem a filho ou filha?

Não, não é isso. Não dissemos que a venda de ascendente a descendente é proibida; dissemos que é ela não é recomendada, não proibida.

A resposta está naquele mesmo artigo 496 do Código Civil que vimos antes: a venda de ascendente a descendente é anulável, ou seja, pode ser anulada, desde que as partes interessadas peçam a anulação. Em resumo:

A venda pode ser feita, desde que os outros descendentes, e também o cônjuge ou convivente de quem vende, digam expressamente que concordam com a venda.

Essa atenção à formalidade é crucial para assegurar que a venda não seja questionada.

E para neto, bisneto, sobrinho, primo, tio, avô… pode vender?

Como demonstramos em nosso artigo sobre as regras de parentesco no Direito brasileiro, neto e bisneto são descendentes; a venda para eles deve obedecer as mesmas regras de uma venda a filho/filha.

Venda a colaterais

Com sobrinhos e primos a situação é diferente: demonstramos no mesmo artigo que sobrinhos e primos não são descendentes, mas colaterais.

A venda a colaterais não está submetida à mesma regra do artigo 496 do Código Civil. Pode ser feita sem formalidades especiais.

Mesmo assim, a depender da configuração familiar, a ordem de vocação hereditária estabelecida pelos artigos 1.829 a 1.844 do Código Civil pode colocar sobrinhos ou primos na linha direta de sucessão.

O melhor a fazer, na venda a sobrinhos ou primos, é consultar um advogado antes da venda para analisar a configuração familiar e formalizar corretamente o negócio.

Venda de descendente a ascendente

Com tios e avós, a situação é bem diferente: a venda é de descendente a ascendente, sobre a qual os legisladores não impuseram nenhuma formalidade ou exigência especial.

Pode acontecer, entretanto, de a configuração familiar colocar o ascendente na linha direta de sucessão.

Embora não exista na legislação brasileira nenhuma formalidade ou exigência especial para a venda de descendente a ascendente, o melhor a fazer é consultar um advogado antes da venda para evitar problemas futuros.

Para que a venda seja legal, o(a) cônjuge/convivente de quem vende, e os outros descendentes, devem todos participar do negócio como terceiros intervenientes.

Digamos, para facilitar o entendimento, que Rosana resolvesse fazer a venda da forma certa.

Logo no início do contrato/escritura de compra e venda, Rildo, Renilson e Renato deveriam ser identificados:

RILDO SILVA SANTOS, brasileiro, solteiro, eletricista, RG 00000000-00, CPF 000.000.000-00, e-mail rildosilvasantos@emailinexistente.com.br, residente e domiciliado na Rua dos Bobos, 0, CEP 00.000-000, Centro, Imaginópolis; RENILSON SILVA SANTOS, brasileiro, estoquista, RG 11111111-11, CPF 111.111.111-11, e-mail renilsonsilvasantos@emailinexistente.com.br, residente e domiciliado na Rua dos Bobos, 1, CEP 00.000-000, Centro, Imaginópolis, casado em regime de comunhão parcial de bens com RAILANE SOUZA SANTOS, brasileira, auxiliar administrativa, RG 22222222-22, CPF 222.222.222-22, e-mail railanesouzasantos@emailinexistente.com.br, residente e domiciliada no mesmo endereço do marido; REINALDO CRUZ SANTOS, brasileiro, aposentado, RG 33333333-33, CPF 333.333.333-33, e-mail reinaldocruzsantos@emailinexistente.com.br, residente e domiciliado no mesmo endereço da VENDEDORA, com quem convive em união estável desde 01/01/1990 em regime de comunhão parcial de bens; todos participando desta compra e venda na qualidade de TERCEIROS INTERVENIENTES para fins de registro de seu consentimento explícito com o negócio, conforme exigência do Código Civil, art. 496;

O contrato/escritura segue com as cláusulas pactuadas entre Rosana (vendedora mãe) e Robson (comprador filho), e ao final inclui uma cláusula igual ou parecida com esta:

CLÁUSULA XXXXX. Os TERCEIROS INTERVENIENTES identificados neste documento, cumprindo exigência do art. 496 do Código Civil, afirmam terem conhecimento da venda estipulada entre VENDEDORA e COMPRADOR por este documento, com a qual consentem expressamente de modo irrevogável e irretratável, afirmando ainda que não têm nada a lhe opor, obrigando-se, por si e por seus sucessores, a respeitá-la como boa, firme e valiosa.

Basta tomar estes cuidados, e a venda de ascendente a descendente passa a ser regular.

Qual o prazo para pedir a anulação da venda irregular?

Agora, voltemos ao caso da venda da casa de Rosana para Robson.

Digamos que, em vez de simplesmente reclamarem, Rildo, Renilson e Renato tenham procurado um advogado para tentar reverter a venda logo ao tomar conhecimento dela.

A primeira coisa que o advogado pergunta é: quando a venda foi feita?

O que o advogado quer saber é se ainda existe prazo para uma ação anulatória.

De acordo com o artigo 205 do Código Civil, , este prazo é de dez anos.

E quando este prazo começa a ser contado? Começam aqui as “pegadinhas”.

Pegadinha 1: contagem de prazo na venda “de boca”, ou por contrato particular

Digamos que esta venda tenha sido feita “de boca”, ou por meio de um contrato particular.

Neste caso, o prazo começa a contar a partir do dia em que o(a) viúvo(a) ou demais herdeiros tiveram conhecimento da venda.

Há consequências muito importantes a tirar deste fato:

Pegadinha 2: contagem de prazo na venda por escritura pública

Caso completamente diferente é o de uma venda feita por meio de escritura pública.

Quem entende um pouco das rotinas de cartório sabe que o artigo 3º da Lei 8.935/1994 estabelece que todo ato de tabelião tem “fé pública”, ou seja:

Além disso, as escrituras públicas (como qualquer ato de tabelião) têm publicidade, ou seja, presume-se que todos sabem o que aconteceu.

Com isso, presume-se que a venda feita por escritura pública é de conhecimento público desde o dia em que a escritura pública foi produzida.

Isto tem enorme impacto sobre a contagem do prazo na venda por escritura pública:

Por isso, a escritura pública é o melhor instrumento para formalizar uma venda de ascendente a descendente.

Se a venda for de imóveis, então, além de recomendada, a escritura pública é obrigatória se o valor do imóvel for maior ou igual a trinta salários mínimos.

O que acontece se passar o prazo e não for pedida a anulação da venda?

Temos um artigo bastante detalhado sobre prescrição e decadência , nomes técnicos para dois efeitos da passagem do tempo sobre os direitos. Recomendamos a leitura antes de prosseguir.

Quando passa o prazo de dez anos, o direito das partes prejudicadas anularem a venda é afetado pela prescrição.

Com isso, elas simplesmente não podem mais ajuizar ação anulatória.

Se ajuizarem a ação anulatória, o juiz deve extinguir o processo sem julgar o mérito da causa, por força da prescrição.

Deixa de existir, portanto, a ameaça da anulação contra a venda irregular de ascendente a descendente, que passa a valer como uma venda comum.

Conclusão

Neste artigo, pretendíamos responder a três perguntas:

Vimos que se é descendente, a venda é anulável, mas pode ser válida desde que tenha a autorização explícita do(a) cônjuge/convivente de quem vende e dos demais descendentes.

Do contrário, a venda poderá ser anulada judicialmente, por meio de ação anulatória.

Esta formalidade é imposta pelo artigo 496 do Código Civil.

Já a venda entre parentes colaterais – sobrinho, irmão, primo, etc. – não está submetida à mesma formalidade, mas é interessante analisar a composição familiar junto com um advogado se estes colaterais estiverem colocados em linha sucessória direta de quem vende; assim se evitam problemas no futuro.

O mesmo vale para a venda de descendente a ascendente.

A consulta a um advogado na venda entre parentes é o melhor caminho para evitar brigas e desentendimentos na família.

Curiosidade extra: desde quando é proibida a venda de ascendente a descendente?

Certa vez, um rapaz nos procurou querendo desatar alguns nós de uma situação imobiliária muito complexa, que envolvia a venda de um imóvel de ascendente a descendente.

Nossa primeira observação foi de que a venda do imóvel da avó ao pai colocava a situação em risco. O rapaz, muito cioso de seus próprios direitos, disse que “isso é um absurdo”, porque “a prefeitura já havia julgado o caso” com base numa tal “lei de venda de mãe para filho”.

Ora, é óbvio que, fora de certos processos administrativos muito específicos, prefeitura alguma tem poder de julgar. Mas o rapaz insistia na tal “lei de venda de mãe para filho”, mesmo depois de receber de nós a informação de que esta lei não existe, nem nunca existiu.

Para demonstrar este fato e contribuir com a dissipação de concepções equivocadas, apresentamos ao rapaz um parecer bem fundamentado, demonstrando que a venda de ascendente a descendente é proibida desde 1603, e que a tal “lei de venda de mãe para filho” nunca existiu.

Como fundamentação, apresentamos o tratamento do assunto tanto pelo Código Civil atualmente em vigor (Lei 10.406/2002) quanto por todas as leis que o antecederam, retroagindo até 1603.

Como curiosidade neste artigo, apresentamos o tratamento da venda de ascendente a descendente pelas Ordenações Filipinas e pelo Código Civil de 1916.

A venda de ascendente a descendente nas Ordenações Filipinas

As Ordenações Filipinas, compilação legislativa portuguesa cuja parte civil esteve em vigor no Brasil de 1603 até 1916, também tratavam da venda entre ascendentes e descendentes no Título LXXXII do Livro IV. Como curiosidade histórica, eis a transcrição do texto, em ortografia atual:

Por evitarmos muitos enganos e demandas que se causam e podem causar das vendas que algumas pessoas fazem a seus filhos, ou netos, ou outros descendentes, determinamos que pessoa alguma não faça venda alguma, nem troca que desigual seja, a seu filho, ou neto, ou outro descendente, sem consentimento dos outros filhos, ou netos, ou descendentes, que houverem de ser herdeiros do dito vendedor; e não lhe querendo dar o dito consentimento aquele que assim quiser fazer a dita venda ou troca, no-lo fará saber, e sendo nós informado da causa, por que quer fazer a dita venda ou troca ao seu filho, ou descendente, e assim da causa por que os ditos filhos ou descendentes lhe não querem dar o dito consentimento, nós lhe daremos licença que a possa fazer; e fazendo a tal venda ou troca sem consentimento dos ditos filhos, ou sem nossa expressa licença, a tal venda ou troca será nenhuma, e de nenhum efeito, e por morte do dito vendedor será a dita coisa, que assim foi vendida ou trocada, partida entre os seus descendentes, que seus herdeiros forem, como que estivera em poder do dito vendedor, e fora sua ao tempo de sua morte, sem por isso pagarem preço algum àquele que a comprou.

Como em outras regras das Ordenações Filipinas, o texto é longo, minucioso, detalhista; neste caso, além de indicar o que proíbe, a regra explica o procedimento para corrigir a situação antijurídica descrita.

O detalhismo típico das Ordenações Filipinas explicita a quem se proíbe a venda: “filhos, netos, ou outros descendentes”.

Alguns pontos muito diferentes da regra atual:

Deve-se ter em mente que, no século XVII, o regime de propriedade de bens era muito diferente do atual.

Não existia a função social da propriedade, criada no século XIX e implementada no Brasil aos poucos, ao longo do século XX, até sua consolidação definitiva na Constituição de 1988 e no Código Civil de 2002.

A questão ambiental ainda não era conhecida com este nome, e as obrigações dos proprietários com o meio ambiente eram pouquíssimas, a maioria referindo-se à preservação de certas áreas de mata e de nascentes de uso comum, sempre dependentes do casuísmo e da vontade do rei.

As restrições urbanísticas eram estabelecidas pelas chamadas posturas municipais, das quais poucas afetavam o direito de propriedade.

Existia a curiosa instituição do morgadio, pela qual um conjunto de bens, rendas, utensílios domésticos e de trabalho, etc. poderiam ser reunidos num conjunto, submetido a certas regras especiais, e não poderiam ser desvinculados deste conjunto para venda, doação, troca, etc. sem o consentimento do rei. O morgadio era mantido como uma espécie de instituição familiar, transmitida por herança ao filho homem mais velho, que se tornava seu administrador e tinha o dever de aumentá-lo; o resultado, além de manter unificado o patrimônio familiar por gerações, era o empobrecimento dos filhos não-primogênitos. O morgadio foi extinto em 1820 na Espanha, em 1835 no Brasil, em 1863 em Portugal.

Tudo isso fazia das Ordenações Filipinas um conjunto de regras que não se consegue conhecer adequadamente com a simples leitura do texto, mas sim ao lado de bons livros de História que nos permitam contrastar nossa própria mentalidade e instituições com aquelas existentes no passado.

A venda de ascendente a descendente no Código Civil de 1916

Depois de estarem em vigor por trezentos e treze anos, as Ordenações Filipinas foram enfim substituídas pela Lei 3.071/1916 , conhecida como Código Civil de 1916. Esta lei foi explicitamente revogada pelo Código Civil atualmente em vigor (Lei 10.406/2002), e sua leitura vale somente como curiosidade histórica, ou como estudo das origens da legislação brasileira atual.

A venda entre ascendentes e descendentes também foi tratada pelo Código Civil de 1916 em seu artigo 1.132. De modo bem parecido com o atual código, o Código Civil estabeleceu a nulidade do ato, salvo se houvesse consentimento expresso dos demais descendentes. Como curiosidade histórica, eis o texto:

Art. 1.132. Os ascendentes não podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam.

A redação seguiu de perto o texto das Ordenações Filipinas – “…que pessoa alguma não faça…” – mas foi problemática.

Por décadas estudiosos do Direito Civil debateram os efeitos da expressão “não podem”:

Com o tempo, venceu a posição de que a venda de ascendente a descendente é anulável, tal como aparece hoje no Código Civil em vigor.