TJ-SP reforma decisão histórica sobre proteção de dados -- para pior


O Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a decisão histórica que condenou a construtora Cyrella a pagar indenização com base no compartilhamento irregular de dados. A decisão é um retrocesso perigoso, que merece comentários. Leia o artigo, e vamos debater!

Quem milita na área de proteção de dados conhece de trás para frente o que veio a ficar conhecido como “caso Cyrella”, e de sua decisão pioneira em condenar uma empresa por compartilhamento irregular de dados de cliente com “parceiros”. Recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, entretanto, reformou a sentença para pior, desconsiderando conceitos básicos da proteção aos direitos do consumidor – como a inversão do ônus da prova e a responsabilidade objetiva dos fornecedores – e todo o marco legal de proteção de dados aplicáveis ao caso.

Esta situação abre um precedente perigoso, que merce ser comentado em detalhes.

O “caso Cyrella”

Para quem não conhece o “caso Cyrella”, vale a pena relembrar do que ele trata.

A condenação original

Uma pessoa comprou um imóvel da Cyrella em novembro de 2018. Daí em diante, passou a ser assediada por instituições financeiras e firmas de decoração, que sempre referenciavam sua recente compra junto à construtora. Este cliente recorreu ao Judiciário para fazer parar o compartilhamento abusivo, os contatos indevidos, e solicitando indenização por danos morais.

Nos autos do processo 1080233-94.2019.8.26.0100, a juíza Tonia Yuka Koroku, da 13ª Vara Cível de São Paulo, entendeu que a Cyrella, ao compartilhar dados de clientes com “parceiros” sem a devida autorização, violou a LGPD, o Código de Defesa do Consumidor e a Constituição Federal, especialmente a honra, a privacidade, a autodeterminação informativa e a inviolabilidade da intimidade.

Com isso, a juíza condenou a construtora a abster-se de repassar dados do cliente (sob pena de multa de R$ 300,00 a cada novo contato), e a indenizar o cliente em R$ 10 mil por danos morais.

Este condenação foi celebrada com razão pelos especialistas em proteção de dados. Foi a primeira vez em que a LGPD foi usada para coibir prática abusiva de compartilhamento irregular de dados. Esperava-se, com esta decisão, abrir-se um precedente importante para disciplinar mais incisivamente o compartilhamento de dados, estabelecendo os parâmetros para novas decisões judiciais.

(Leia a sentença completa neste link externo.)

O recurso

Como era de se esperar, a Cyrella recorreu da decisão.

No acórdão que julgou a Apelação Cível nº 1080233-94.2019.8.26.0100, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo seguiu o voto da relatora, Maria do Carmo Honório, e reformou a sentença de primeiro grau para isentar a construtora Cyrella do pagamento da indenização de R$ 10 mil.

Este acórdão, a nosso ver, tem diversos equívocos no que diz respeito ao disciplinamento jurídico do tratamento irregular de dados pessoais, e merece comentários extensos.

(Leia o acórdão completo neste link externo.)

Meus comentários

No mérito, a decisão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo contém argumentos que merecem comentários bastante destacados. São exemplos cabais de como não se deve julgar em tempos de construção de um ecossistema tecnológico respeitador da privacidade e da autodeterminação informativa dos cidadãos brasileiros, que a LGPD não inaugura, apenas consolida.

O acórdão falha ao creditar apenas à LGPD a proteção de dados de consumidores:

“Nesse aspecto, de proêmio, destaco que, embora a MM. Magistrada a quo tenha também aplicado a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD - Lei n° 13.709/2018) ao caso em tela, não havia fundamento para tanto, eis que, quando da contratação do empreendimento da Cyrella pelo autor (10 de novembro de 2018 - págs. 55/106) e do suposto vazamento de dados, ela ainda não estava em vigor.

Note-se que o contrato foi firmado em 10/11/2018 e que o menor prazo de entrada em vigor da referida Lei (dia 28/12/2018) referia-se somente à criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e à composição do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade. No mais, a vigência plena da Lei Especial ocorreu apenas em 14/08/2020 (Art. 65).” (pp. 8-9 do acórdão)

Talvez sob influência do afluxo de notícias a respeito da LGPD, cujo início da plena vigência, foi, realmente, uma verdadeira novela, cheia de idas e vindas, a decisão tenha entendido que apenas ela, e somente ela, chancelaria a proteção de dados do autor.

Não é esse o caso. Apresentados os fatos pelas partes em juízo, tem o juiz o dever de conhecer as normas jurídicas adequadas ao caso, e também o de aplicá-las por sua própria autoridade. Jura novit curia, diriam os latinófilos: “o juiz conhece o Direito”. Diriam, também, da mihi factum, dabo tibi jus: “dai-me os fatos, dar-te-ei o Direito”. Tais princípios, adotados pelo ordenamento jurídico brasileiro, deveriam levar os julgadores a perceber há quanto tempo a legislação brasileira protege dados de consumidores.

A este respeito, o Código de Defesa do Consumidor é pioneiro:

Art. 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.

§ 1º Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos.

§ 2º A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.

§ 3º O consumidor, sempre que encontrar inexatidão nos seus dados e cadastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a alteração aos eventuais destinatários das informações incorretas.

§ 4º Os bancos de dados e cadastros relativos a consumidores, os serviços de proteção ao crédito e congêneres são considerados entidades de caráter público.

§ 5º Consumada a prescrição relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão fornecidas, pelos respectivos Sistemas de Proteção ao Crédito, quaisquer informações que possam impedir ou dificultar novo acesso ao crédito junto aos fornecedores.

§ 6º Todas as informações de que trata o caput deste artigo devem ser disponibilizadas em formatos acessíveis, inclusive para a pessoa com deficiência, mediante solicitação do consumidor.

Estão aí nestes dispositivos, desde 1990, todos os principais elementos daquilo que os profissionais da proteção de dados sob influência do Regulamento Geral de Proteção de Dados europeu conhecem, hoje, como solicitações de titular de dados (ou data subject requests, como querem os anglófilos).

A isso se soma o estabelecimento da proteção de dados pessoais como princípio da disciplina do uso da internet no Brasil, inaugurado pelo Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014, art. 3º, III). A proibição de compartilhamento de dados pessoais também era prevista desde 2014 pelo Marco Civil da Internet (art. 7º, VII), assim como o requisito do consentimento expresso para o tratamento de dados pessoais (art. 7º, IX).

A proteção de dados pessoais é antiga no ordenamento jurídico brasileiro, portanto. Precede a LGPD em décadas.

Se a Cyrella mantém banco de dados com clientes, deveria ser compelida a demonstrar, judicialmente, que não compartilhou estes dados com quem quer que seja. Está obrigada a fazê-lo, por força da inversão do ônus da prova. Mas a decisão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, infelizmente, negou a inversão do ônus da prova neste caso.

Negação da inversão do ônus da prova

A decisão favorável à Cyrella negou implicitamente a inversão do ônus da prova com os seguintes argumentos:

“…no caso em tela, com a devida vênia à Magistrada sentenciante, não há prova inequívoca de que foi a requerida quem repassou os dados pessoais do requerente aos prestadores de serviços que o contataram por e-mail e mensagens de WhatsApp […]”. (p. 9 do acórdão)

“Em que pese a informação de uma das prestadoras que entrou em contato com o autor sobre o acesso a mailing por meio de “portal de construtoras” (pág. 145), este fato, por si só, não identifica a ré como a responsável pelo alegado vazamento dos dados, máxime porque outra informou que trabalhavam ‘com diversas parcerias’, arrematando: ‘não sei ao certo quem passou o seu Contato’ […]”. (p. 10 do acórdão)

Num processo consumerista, a inversão do ônus da prova é direito básico do consumidor (CDC, art. 6º, VIII). É inclusive abusiva a inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor (CDC, art. 51, VI).

Por este critério, sendo verossímil a alegação do consumidor (ou seja, sempre que ela tiver aparência de ser verdadeira), cabe ao juiz inverter o ônus da prova e obrigar a empresa acionada a demonstrar que não é responsável por aquilo que o consumidor alega.

Note-se: verossimilhança não é veracidade. Não é prova inequívoca. É aparência de verdade, é probabilidade, é o que tem grande chance de ser verdadeiro. É nesse sentido, inclusive, que a palavra é dicionarizada.

Vejamos o que diz o dicionário Aulete Digital:

(ve.ros.sí.mil) a2g. 1. Que parece ser verdadeiro ou que tem condições de realmente ter acontecido; PLAUSÍVEL; VERISSÍMEL: "…Eça de Queirós, que talvez se picasse de realista, tem na A Relíquia uma visão ou um sonho muito pouco verossímil, longo e cheio de pitoresco e pinturesco…" (Lima Barreto, Marginália). 2. Que é possível ou provável: *Era um relato suspeito, mas perfeitamente verossímil [Pl.: -meis.] [F.: vero- + símil. Ant. ger.: inverossímil.]

(ve.ros.si.mi.lhan.ça) sf. 1. Qualidade do que é verossímil; VEROSSIMILITUDE; VEROSSIMILIDADE: Esse filme não tem verossimilhança 2. Liter. Numa obra literária, harmonia entre os elementos fantasiosos ou imaginários que sejam determinantes no texto; COERÊNCIA [F.: De verossímil(h) + ança.]

Agora, o que diz o dicionário Aurélio:

verossímil. [Var. de verissímil.] Adj. 2 g. 1. Semelhante à verdade; que parece verdadeiro. 2. Que não repugna à verdade; provável.

verossimilhança. [Var. de verissimilhança.] S. f. 1. Qualidade ou caráter de verossímil ou verossimilhante […]. 2. Liter. Coerência interna da obra literária no tocante ao mundo imaginário das personagens e situações recriadas.

Por último, o que diz o Houaiss:

verossímil. adj. 2g. 1. que parece verdadeiro […]. 2. que é possível ou provável por não contrariar a verdade, plausível.

verossimilhança s.f. 1. qualidade do que é verossímil ou verossimilhante. 2. LIT ligação, nexo ou harmonia entre fatos, ideias etc. numa obra literária, ainda que os elementos imaginosos ou fantásticos sejam determinantes no texto; coerência.

A verossimilhança de uma argumentação pode ser exemplificada de forma simples com um caso semelhante.

Digamos que eu tenha uma conexão de internet banda larga com a operadora X, contratada em nome de minha esposa. Com quedas de conexão, eu reclamo constantemente no serviço de atendimento ao consumidor dessa operadora. De repente, tanto eu quanto minha esposa passamos a receber ligações e mensagens da operadora Y. Quando pergunto onde conseguiram minhas informações pessoais, que nunca compartilhei com essa operadora, os vendedores dizem não saber, dizem que “é o sistema”, entre outras desculpas. Procuro o encarregado de dados da operadora Y perguntando quais dados meus estão à sua disposição. Descubro que a operadora Y tem dados pessoais meus referente a duas linhas antigas, há muito desativadas. Ocorre que um dos vendedores atuando em nome da operadora Y diz que quem compartilhou dados com ele, incluindo meu endereço, foi a operadora X. Digamos que estes fatos fossem levados a juízo, sob qualquer alegação. Como já havia sido solicitado o encerramento das ligações junto à operadora Y e elas continuaram, devo provar a continuidade das ligações e a solicitação do encerramento. Quanto à operadora X, devo provar que vendedores da operadora Y afirmam ter recebido dados meus da operadora X, e exigir que ela prove, em juízo, que não compartilhou dados meus com ninguém.

Agora, veja-se a narrativa original do “caso Cyrella”. O cliente que comprou o imóvel passou a receber ligações, mensagens de Whatsapp e e-mails pouco tempo depois da compra, todos referenciando a compra recente. Além disso, alguns dos vendedores dizem ter recebido os dados do cliente diretamente da Cyrella. Essa aparência de verdade, essa chance, essa probabilidade, deve ser confirmada ou refutada por provas, que só a Cyrella está em condições de apresentar. Caberia a ela provar que tem, sim, dados do cliente, mas nunca os compartilhou com ninguém; ou, por outro lado, que não tem dados do cliente, por terem sido eliminados depois da compra.

Argumentos não faltam. Mas é a Cyrella quem deveria ter apresentados as provas capazes de confirmar a verossimilhança dos fatos, ou de refutá-la. Não o consumidor. Na verdade, frente aos indícios de que a Cyrella poderia ter sido responsável pelo compartilhamento irregular de dados, o correto seria obrigar a construtora a demonstrar, inequivocamente, como trata os dados fornecidos pelo cliente, igualzinho ao que faria numa solicitação de titular de dados (data subject request, ou DSR).

A nosso ver, a decisão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo errou ao não observar a inversão do ônus da prova neste caso. Ainda mais quando o próprio acórdão reconhece que “a relação jurídica discutida nos autos é de consumo, porquanto o autor, na condição de promitente comprador do bem imóvel, é consumidor, enquanto a ré, na condição de promitente vendedora do bem, é fornecedora, sujeitando-se, portanto, às normas do Código de Defesa do Consumidor” (p. 6 do acórdão).

Há, ainda, outros pontos a comentar.

Negação do desvio produtivo do consumidor

Além dos problemas já apontados, a argumentação do acórdão não parece levar em conta a realidade das comunicações abusivas quando argumenta da seguinte forma:

“As alegadas ligações, mensagens e e-mails recebidos pelo autor, ainda que de forma reiterada e apesar de causar incômodo, não caracterizam, por si só, violação de intimidade. Na realidade, nas circunstâncias apresentadas, elas não ultrapassaram a esfera do mero aborrecimento.

“Isso pode ser inferido da mera análise da documentação acostada aos autos, uma vez que as mensagens que o consumidor recebeu são simples convites para eventos e apresentação de produtos ou serviços, nas quais não consta qualquer informação de um suposto relacionamento do fornecedor com a apelante Cyrela, muito menos palavras inconvenientes ou ofensivas.

“É verdade que existem danos que podem ser presumidos, em razão de sua notoriedade, de tal modo que ao autor basta a alegação. Outros, porém, como no caso dos autos, devem ser provados. Ocorre que o simples encaminhamento de mensagens genéricas por e-mail ou WhatsApp, conforme já ressaltado, não é conduta susceptível de causar dano moral.” (página 12 do acórdão)

A argumentação não corresponde à nossa realidade, em que o compartilhamento indiscriminado de dados entre empresas, assim como a compra de bancos de dados “frios” em mercados ilegais, são o “padrão” que a normatização da proteção de dados pessoais combate.

Na militância como advogado, atuo em casos em que consumidores têm sua rotina completamente alterada por ligações abusivas, seja em casos em que há dívidas em aberto envolvidas, seja nos casos em que não há dívida alguma a justificar as ligações. Por força desta atuação, sistematizei técnicas extrajudiciais, e também judiciais, para fazer prova de spam telefônico e para fazer parar ligações indesejadas.

Se olharmos cada caso individualmente, o problema não está em “palavras inconvenientes ou ofensivas”, mas na quantidade e na frequência das ligações indesejadas. Encontrei casos de pessoas recebendo trinta e oito ligações no mesmo dia, em horários diversos. Encontrei outros casos de pessoas recebendo todos os dias, durante dois anos, ao menos cinco ligações de empresas cujas ofertas já haviam sido sistematicamente recusadas, seja junto aos vendedores, seja diretamente com os encarregados de dados das empresas.

Testemunhei em primeira mão o abalo psicológico sofrido por essas pessoas. Algumas se abalam profundamente ao ouvir o toque sonoro de seus próprios telefones. Em tempos de trabalho remoto, uma cliente teve crise nervosa enquanto dava aula pelo Google Meet, porque o telefone tocou cinco vezes durante a aula, interrompendo-a pela enésima vez.

O problema não se restringe às ligações telefônicas. As mensagens abusivas também chegam por e-mail e Whatsapp. Novamente: o problema não está em “palavras inconvenientes ou ofensivas”, mas na quantidade e na frequência das mensagens recebidas.

Quem acompanha meu site sabe que realizo desde julho uma “experiência” de uso da LGPD para combate ao spam. Nesta “experiência”, que envolve as caixas de mensagens de cinco pessoas, localizei correspondência indevida enviada por nada menos que 122 empresas brasileiras, com grande reconhecimento no mercado. O volume das mensagens chegava a vinte mensagens por dia, a depender do caso. (Esta “experiência” ainda está em curso; publicarei os resultados assim que encerrá-la.)

Testemunhei em primeira mão, nestes casos, o abalo psicológico provocado pelos e-mails e mensagens irregulares. Gente que, por erros de digitação nos bancos de dados das empresas, é diuturnamente incomodada com boletos de cobrança, e sentem-se inseguras ao pensar que outros dados pessoais seus (como CPF, RG, CNH e outros) estão sendo usados por aí para contrair dívidas sem seu conhecimento. Gente que perdeu o sono depois das muitas notícias de “megavazamentos”. Gente que recebe, inclusive, documentos confidenciais destinados a outras pessoas, encaminhados irregularmente por causa de um erro de digitação no destinatário do e-mail, e que quando vão procurar o atendimento ao cliente dos bancos, são tratadas como criminosas. Gente que a cada novo dia precisa tirar entre uma hora a uma hora e meia somente para dizer “não, não sou essa pessoa” a dezenas de mensagens erradas que lhes chegam ininterruptamente.

Tudo isso, além dos abalos psicológicos causados, é desvio produtivo do consumidor, ou seja, é mobilização do tempo dos consumidores para lidar com propaganda abusiva e comunicação irregular à qual não deram causa, e que lhes rouba tempo precioso ao lazer, aos estudos, ao descanso e ao próprio trabalho. Não por acaso, o desvio produtivo do consumidor e seu correlato, o dano temporal, têm sido constantemente debatido por pesquisadores e praticantes do Direito como Marcos Dessaune, Gustavo Borges, Maurilio Casas Maia e Laís Bergstein (que chega a falar em menosprezo planejado do tempo do consumidor).

O desvio produtivo do consumidor, inclusive, é usado em profusão em julgamentos do Tribunal de Justiça de São Paulo, como estes:

APELAÇÃO – DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO – TELEFONIA – ÔNUS DA PROVA – FALHA NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS – DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR - Não obstante o pedido de cancelamento da linha telefônica, a autora permaneceu recebendo cobranças indevidas; - Não houve mero aborrecimento cotidiano, mas ofensa à boa-fé objetiva e aos direitos da personalidade do consumidor. A indenização por ofensa moral, portanto, deve ser reconhecida, observando-se que a tese sustentada pelo recorrente e utilizada por esta julgadora em casos semelhantes – desvio produtivo do consumidor – serve de base para a própria indenização por danos morais, não configurando nova modalidade de dano, com fixação de valor próprio; – Caso em estudo no qual a indenização deve ser arbitrada em quantia equivalente a R$5.000,00, suficiente para reparar os danos causados e impingir ao fornecedor a melhora da prestação de seus serviços, com a reabilitação da internet e telefonia, pelos valores inicialmente contratados. RECURSO PROVIDO (TJ-SP 10005363020188260077 SP 1000536-30.2018.8.26.0077, Relator: Maria Lúcia Pizzotti, Data de Julgamento: 25/07/2018, 30ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/07/2018)

APELAÇÃO – COBRANÇA INDEVIDA – NEGATIVA DE CONTRATAÇÃO – DANO MORAL – DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR. 1 – Cobrança indevida. Autoras que apesar de não terem contratado o serviço da requerente, receberam cobrança. Conduta reiterada. 2 – Dano moral configurado – Valor da indenização fixado em R$ 10.000,00, para cada autora, corrigidos do arbitramento pela Tabela do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, e acrescidos de juros de mora de 1% ao mês a contar do evento danoso. RECURSO PROVIDO PARCIALMENTE. (TJ-SP - AC: 10003046620188260352 SP 1000304-66.2018.8.26.0352, Relator: Maria Lúcia Pizzotti, Data de Julgamento: 03/07/2020, 30ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 03/07/2020)

RECURSO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. ENSINO SUPERIOR. DANOS MORAIS. TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR. 1) O desvio produtivo é a necessidade de o consumidor afastar-se consideravelmente de suas atividades e investir relevante tempo na solução de um problema criado pelo fornecedor, comprometendo a estabilidade de sua rotina e a segurança de seus prognósticos pessoais, capazes de aduzir inquietações físicas e metais. 2) O desgaste de sete meses percorrendo as instâncias burocráticas da ré entre promessas frustradas, em uma seara tão sensível como a formação acadêmica e profissional, compromete a tranquilidade da rotina para além das atribulações da vida cotidiana, ameaçando mesmo o sentimento de segurança necessário à previsibilidade para organização dos planos futuros, incluído o cronograma financeiro correspondente, capaz de colocar planos de vida de curto e médio prazo em suspenso e perturbar a paz tanto para a realização das atividades do dia a dia quanto o recesso do lar. 3) O paradigma da boa-fé objetiva impõe que o fornecedor atue positivamente para a solução ou, ao menos, a mitigação do problema, o que inclui um diagnóstico preciso, uma meta clara e procedimentos claros e efetivos para a construção, mesmo gradual, de uma solução adequada para ambas as partes. 4) Danos morais presentes, arbitrada a indenização em cinco mil reais. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJ-SP - RI: 10169168220168260309 SP 1016916-82.2016.8.26.0309, Relator: Rafael Carvalho de Sá Roriz, Data de Julgamento: 04/05/2018, Primeira Turma Civel e Criminal, Data de Publicação: 14/05/2018)

O acórdão, portanto, não foi feliz em sua fundamentação, porque desconsidera o desvio produtivo do consumidor. Mas também porque desconsidera a própria essência da proteção de dados.

Negação do “espírito” da LGPD

O acórdão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo contém, ainda, um argumento que demonstra pouca sintonia com o que chamarei aqui, na falta de melhor expressão, de “espírito” da LGPD.

“O consumidor, no caso, independentemente da autoria das mensagens, não sofreu nenhum ônus excepcional, a não ser aquele que todo ser humano tem que aprender a suportar por viver numa sociedade tecnológica, frenética e massificada, sob pena da convivência social ficar insuportável.

“Trata-se, pois, de episódio do qual não resultou nenhuma interferência excepcional no comportamento do autor e que não rompeu o seu equilíbrio psicológico.” (página 13 do acórdão)

O “ônus” a que se refere o acórdão, aquele ônus “que todo ser humano tem que aprender a suportar por viver numa sociedade tecnológica, frenética e massificada, sob pena da convivência social ficar insuportável”, é a existência de tratamento de dados sem qualquer regulamentação, sem freios e sem controles. Melhor dizendo: é a normalização desse tratamento indisciplinado. É atribuição de “normalidade” a práticas como o spam de e-mail, as robochamadas (ou robocalls, para os anglófilos), as práticas abusivas no teleatendimento ativo (ou telemarketing outbound, para os anglófilos).

Com dois parágrafos, o acórdão dá a entender que de pouco ou nada servem as normas fundamentais relativas à proteção de dados constantes na Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor, no Marco Civil da Internet, na LGPD, nas normas técnicas da “família” ISO 27000. Pode não ter sido a intenção, pois o texto é formulaico e repete um padrão constante em inúmeros julgamentos relativos a spam e ligações abusivas, mas a mensagem implícita é essa.

Implicitamente, esses dois parágrafos declaram baldado todo o esforço dos profissionais da proteção de dados, de operadores do direito e dos cidadãos para a construção de um ecossistema digital respeitador dos direitos humanos, do livre desenvolvimento da personalidade, da dignidade e do exercício da cidadania em meios digitais; da liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; da pluralidade e da diversidade; da abertura e da colaboração; da livre iniciativa, da livre concorrência e da defesa do consumidor; da proteção e respeito à privacidade; da inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; da proteção dos dados pessoais; da autodeterminação informativa; da responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades; do bem-estar físico e psicológico; enfim, de todos os princípios, diretrizes e fundamentos do marco legal da proteção de dados no Brasil.

Não é um bom caminho.

O que está por vir no “caso Cyrella”

Ao que tudo indica, no “caso Cyrella” o autor da ação deve recorrer da decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo. Solidarizo-me, mesmo à distância, com a irresignação do autor. Num caso pioneiro como este (ou leading case, como talvez queiram os anglófilos), é menos importante o resultado individualmente considerado, e mais relevante sua repercussão geral.

Se restaurada a condenação original, será alargado o caminho para que outros consumidores possam frear os abusos que, por serem “de pequena monta” costumam ser desconsiderados pelos tribunais – ou, melhor dizendo, tratados como “meros aborrecimentos”.

Se mantida a reforma da sentença para derrubar a condenação original, serão necessárias novas investidas judiciais contra estes abusos – agora sem a justificativa de que a LGPD “ainda não entrou em vigor”.

Aguardemos, então, novas notícias sobre o caso.



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