Bis in idem: o que é, como funciona, para que serve, como usar a seu favor
1 Aug 2024 · Tempo de leitura: 8 minuto(s)O que é bis in idem?
Como muitas outras expressões e frases do “advoguês”, bis in idem vem do latim:
-
Bis significa duas vezes ;
-
In significa em ;
-
Idem significa o mesmo ;
-
Bis in idem significa, literalmente, “duas vezes no mesmo”;
Adaptando a tradução para o português, temos algo como “duas vezes a mesma coisa”, “repetir a mesma coisa”, etc.
De onde vem o bis in idem?
Existem certas regras que atravessam os séculos e as gerações, passando de boca a ouvido, até o ponto em que nem mesmo os operadores do Direito mais estudados e experientes conseguem dizer com certeza quando foram criadas.
Com o bis in idem se dá o mesmo. Seu fundamento mais antigo está no Direito grego, no Direito romano, em certas passagens bíblicas e nas Ordenações Filipinas.
Surgiu como salvaguarda contra a aplicação repetida de punições por uma mesma ofensa, refletindo a ideia de que um indivíduo não deveria ser julgado ou punido duas vezes pelo mesmo ato.
Para que serve a proibição ao bis in idem?
Em sua forma original, serve para impedir que alguém seja punido duas vezes pelo mesmo crime.
Em interpretações mais recentes, serve para:
-
Impedir que alguém seja punido mais de uma vez pelo mesmo fato
-
Proibir que alguém inocentado por crime ou infração seja julgado novamente pelo mesmo fato
-
Punir quem cobra por dívida já paga
-
Evitar que alguém pague duas vezes pelo mesmo produto
-
Extinguir processos abertos em comarcas ou juízos diferentes com base nos mesmos fatos
Exemplos práticos de bis in idem
-
Situações em que um indivíduo é processado e julgado por um mesmo crime em dois tribunais diferentes.
-
Aplicação de penalidades múltiplas a um servidor público por uma única infração funcional.
-
Cobrança duplicada de danos materiais por um mesmo fato.
-
Cobrança de taxas abusivas ou indevidas sobre um mesmo serviço ou produto adquirido.
-
Condomínio que aplica duas multas pelo mesmo fato (uma pelo fato original, outra porque a primeira multa não foi paga, gerando “reincidência”).
Qual o fundamento legal do bis in idem?
Diversos países reconhecem o princípio do bis in idem em suas legislações. Por exemplo, países como Estados Unidos, Alemanha e França têm disposições legais que proíbem a dupla punição pelo mesmo delito, assegurando a proteção do indivíduo contra essa prática.
No Brasil, o bis in idem não está previsto, letra por letra, em nenhuma lei específica; é um princípio, um fundamento, uma base para a criação e interpretação de direitos. Sua validade está fundada, em primeiro lugar, parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal :
Art 5º, §2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Por este caminho, bis in idem é princípio recepcionado no Direito brasileiro tanto como regra explícita, encontrada em tratados internacionais, quanto como princípio geral do Direito, espalhado por todo o ordenamento jurídico.
Regra explícita em tratados recepcionados pelo Direito brasileiro
Entre os tratados internacionais, vê-se, primeiro, que o item 4 do artigo 8º da Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas (ONU) diz:
Artigo 8, item 4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá se submetido a novo processo pelos mesmos fatos.
Pelo mesmo caminho, chega-se também ao item 7 do artigo 14 do Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José de Costa Rica) , que diz:
Artigo 14, item 7. Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país.
A proibição ao bis in idem aparece nos tratados internacionais em vigor no Brasil como regra explícita de Direito Penal ou de Direito Administrativo Sancionador.
Princípio geral do Direito brasileiro
O bis in idem também é princípio geral do Direito brasileiro. “Princípios gerais do Direito” são regras genéricas, que condicionam a interpretação das regras do Direito em sua aplicação, e também a própria elaboração de novas regras.
O uso dos princípios gerais no Direito brasileiro está previsto no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/1942) :
Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Surge daí a pergunta: bis in idem pode ser considerado um dos “princípios gerais do Direito” no Brasil?
A resposta: sim, pode, porque o bis in idem pode ser encontrado como fundamento de várias regras do Direito brasileiro, tanto no Direito Penal e no Direito Administrativo Sancionador quanto em outros ramos (Direito Civil, Direito do Consumidor, etc.). Alguns exemplos:
-
O artigo 940 do Código Civil brasileiro diz que quem cobrar dívida já paga fica obrigado a pagar ao devedor o dobro do que houver cobrado;
-
O parágrafo único do artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor alarga a regra, dizendo que o consumidor cobrado em quantia indevida (não só em casos de dívida já paga, mas também em dívidas inexigíveis, dívidas de outra pessoa, etc.) tem direito a receber em dobro o que pagou em excesso, com correção monetária e juros legais.
Por isso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem julgado sempre no sentido de entender a proibição do bis in idem de forma mais ampla:
“[…] o postulado do non bis in idem representa uma vedação a uma dupla punição decorrente de uma mesma situação fática.”
(STJ - AgInt nos EDcl no AREsp: 1016077 ES 2016/0299054-2, Relator: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 05/04/2018, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/04/2018)
Como usar a proibição ao bis in idem em seu favor
Aqui estão alguns exemplos de uso da proibição ao bis in idem em defesa própria, que demonstram como o princípio do bis in idem pode ser aplicado em diferentes contextos para proteger os direitos dos indivíduos contra penalizações e cobranças duplicadas:
Direito do Consumidor
-
Contestação de cobrança duplicada: Um consumidor paga uma dívida de cartão de crédito, mas continua recebendo cobranças da mesma dívida já quitada. Utilizando o princípio do bis in idem, o advogado pode solicitar a anulação das cobranças e buscar indenização por danos morais.
-
Defesa contra execução duplicada: Um cliente quita uma dívida com uma empresa, mas a empresa ajuíza uma nova ação de execução pela mesma dívida. O advogado pode invocar o bis in idem para extinguir a segunda ação de execução.
Direito Condominial
-
Defesa contra multas duplicadas: Um condômino é multado por deixar seu cachorro solto nas áreas comuns. Posteriormente, recebe outra multa pelo mesmo incidente, alegando reincidência. O advogado pode defender que a segunda multa é indevida, pois não se pode penalizar duas vezes pelo mesmo fato.
-
Recurso contra penalidades repetidas: Um morador é multado por realizar obras sem autorização prévia e, em seguida, multado novamente pelo mesmo motivo antes de pagar a primeira multa. O advogado pode argumentar que a segunda multa configura bis in idem e deve ser cancelada.
Direito Administrativo
-
Proteção contra dupla punição administrativa: Um servidor público é penalizado por uma infração funcional e, posteriormente, recebe outra punição administrativa pelo mesmo fato. O advogado pode recorrer ao princípio do bis in idem para cancelar a segunda punição.
-
Contestação de autuações fiscais repetidas: Uma empresa é multada por irregularidades fiscais em um período específico e, posteriormente, recebe outra multa pelo mesmo período com base na mesma irregularidade. O advogado pode defender que a segunda autuação é inválida, pois constitui dupla penalização pelo mesmo ato.
Processos na Justiça
-
Recurso contra múltiplos processos civis: Uma pessoa é processada em duas ações civis distintas por danos materiais decorrentes de um mesmo acidente de trânsito. O advogado pode argumentar que a segunda ação deve ser extinta, pois já existe um processo em andamento pelos mesmos fatos.
-
Defesa contra repetição de litígio: Um indivíduo é processado em um tribunal estadual e em um tribunal federal pelos mesmos fatos relacionados a um contrato comercial. O advogado pode utilizar o bis in idem para pedir a extinção de um dos processos.
Esses exemplos demonstram É essencial contar com a assistência de um advogado para avaliar e utilizar corretamente esse princípio em cada caso específico.
Conclusão
A proibição ao bis in idem é um princípio jurídico que proíbe a punição ou cobrança dupla pelo mesmo ato ou dívida.
Originada no Direito romano e presente em várias legislações internacionais e brasileiras, ela tem comob função evitar injustiças e abusos, assegurando que ninguém seja penalizado repetidamente por uma mesma infração. Exemplos práticos incluem processos judiciais duplicados, penalidades múltiplas para uma única infração e cobranças indevidas.
No Brasil, embora não explicitamente prevista em uma única lei, a proibição do bis in idem é reconhecida tanto em tratados internacionais como em princípios gerais do Direito. A compreensão e aplicação correta desse princípio são fundamentais para garantir a justiça e equidade nas relações jurídicas.
Para casos concretos, é essencial consultar um advogado, que poderá avaliar as especificidades e assegurar a proteção dos direitos envolvidos.