Explicando a origem da palavra brocardo

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Este artigo, que complementa outros com o mesmo tema em nosso site, explica a origem da palavra "brocardo", com base em estudos de Friedrich Carl von Savigny, John Webster Spargo, Hermann Kantorowicz, Stephan Kuttner, Leo Spitzer e Ernst Meyer. No final, como conteúdo extra, apresenta rapidamente a vida e a obra de Burcardo de Vórmia, cujo nome se avalia ter dado origem à palavra "brocado", com alguns trechos de seus escritos.

Dura lex, sed lex (“a lei é dura, mas é a lei”). Dormientibus non sucurrit ius (“o Direito não socorre os que dormem”). Non bis in idem (“não se deve repetir o mesmo”). Ainda hoje, em 2024, continuam a ser usadas expressões em latim no Direito, às vezes substituindo longas demonstrações e argumentações.

Quem observa o mundo jurídico à distância, ou quem começa a estudar Direito, estranha tanto latim. A situação é ainda mais curiosa quando se sabe que o estudo do latim não é obrigatório na educação básica há mais de sessenta anos, e que nos cursos de Direito o latim não é oferecido nem como matéria eletiva.

De onde vem, então, essa mania de usar tantas frases em latim no Direito, se quase ninguém entende latim nos dias de hoje? Por que isso é importante? Ainda tem alguma relevância, ou é só pose?

Neste artigo muito longo, porém completo, exploramos a origem da palavra brocardo, que dá nome a estas frases.

Relendo estudos de Friedrich Carl von Savigny (1779-1861) , John Webster Spargo (1896-1956) , Hermann Kantorowicz (1877-1940) , Stephan Kuttner (1907-1996) , Leo Spitzer (1887-1960) e Ernst Meyer (1898-1975) , concluímos que o nome se deve a duas pessoas:

muito de história da Idade Média neste artigo, e também um tanto de Direito Canônico, mas certamente será uma boa leitura.

De onde vem o nome brocardo?

Os brocardos jurídicos — nome técnico desse latinório aparentemente irrelevante — são regras práticas usadas há séculos para resumir e facilitar a interpretação das leis e o estabelecimento de normas no Direito.

Mais que isso: no passado, quando os livros eram escritos à mão, eram poucos e caríssimos, estas regras práticas tinham grande importância enquanto ferramenta mnemônica. Aprendia-se Direito nas universidades não pelo estudo de legislação, como hoje, decorando e debatendo brocardos.

Mesmo com o advento da imprensa, entre os séculos XV e XVI, os brocardos ainda se mostraram muito úteis nos debates judiciais.

A palavra brocardo parece mais uma entre tantas excentricidades do mundo jurídico.

Seria muito mais simples dizer “frase” ou “regra”, não? Com certeza. Como estamos em busca da origem da palavra “brocardo”, entretanto, devemos assumir que este significado está implícito na palavra, e entender por que uma palavra tão distante do som ou da escrita de “frase” ou “regra” veio a ser sua sinônima.

Existem, aliás, outras palavras de significado parecido, que designam conselhos ou regras de sabedoria: aforismos, provérbios ou máximas. Os brocardos não se confundem com nenhuma delas.

Não se chamam aforismos porque este nome vem do grego ἀφορισμός (aphorismós), título de uma das obras de Hipócrates de Cós onde se encontram resumidos, em frases curtas, certos princípios das artes médicas gregas e certos diagnósticos rápidos. A palavra grega ἀφορισμός (aphorismós) vem de ἀφορίζω (aphorízō, “definir, marcar, determinar”), derivada por sua vez de ἀπό (apó, “fora”) + ὁρίζω (horízō, “delimitar, estabelecer limites, separar”), esta última derivando de ὅρος (hóros, “marco, pilar, fronteira, limite”). “Aforismo”, portanto, é uma “definição” da Medicina, não uma regra jurídica. Num passado já bem distante, assim como se aprendia Direito por meio de brocardos, aprendia-se Medicina por meio de aforismos.

Não se chamam provérbios porque a palavra latina proverbium se tornou mais conhecida por causa do livro Provérbios, da Bíblia. A palavra latina proverbium vem de prō- (“para", “a favor de”, “em benefício de”) +‎ verbum (“palavra”) +‎ -ium (sufixo nominal).

Não se chamam máximas, porque esta palavra vem dos livros de filosofia medieval. Um exemplo são os escritos de Boécio . Diz a Internet Encyclopedia of Philosophy que no livro In Ciceronis Topica (“Nos Tópicos de Cícero”) Boécio dedicou-se a usar silogismos dialéticos para construir proposições universais, primitivas e indemonstráveis, evidentes por si e em si próprias, bastante parecidas com os topoi de Aristóteles. Uma proposição com estas características era chamadas por Boécio, em latim, de propositio maxima (“proposição máxima”) — daí o nome máximas.

A origem das palavras ajuda a entender seu uso. Brocardo não é palavra de etimologia fácil; várias hipóteses foram construídas para explicar sua origem, nenhuma delas absolutamente conclusiva, mas uma delas bastante esclarecedora.

A hipótese de Savigny

Começo apresentando e avaliando a hipótese apresentada pelo jurista e historiador germânico Friedrich Carl von Savigny (1779-1861) .

É um começo arriscado, pela fortíssma autoridade associada aos enciclopédicos estudos de Direito medieval europeu de Savigny; mas é inevitável, pois é a primeira e mais referenciada hipótese sobre a etimologia da palavra “brocardo”.

Burcardo de Vórmia: non licet

Em sua Geschichte des römischen Rechts im Mittelalter (“História do Direito Romano na Idade Média”), Savigny diz, realmente, que a origem da palavra é “muito incerta” (cf. Geschichte…, vol. 3, p. 568, clicando aqui (em alemão) ):

Die Entstehung des Namens ist sehr ungensiss. Zwar leitet man denselben von Burchard von Worms, dem Berfasser einer bekannten Decretensammlung ab, alein obgleich der Name als gleichlautend angenommen werden könnte, so ist doch durchaus nicht einzusehen wie diese Decretensammlung den ihr ganz unähnlichen Rechtsregeln den Namen gegeben haben sollte. (Geschichte…, vol. 3, p. 568, clicando aqui (em alemão) )

A origem do nome é muito incerta. Embora o nome seja derivado de Burchard de Worms, o autor de uma conhecida coleção de decretos, ainda que se possa presumir que o nome seja o mesmo, não se consegue entender como essa coleção de decretos poderia ter dado seu nome às regras do Direito, tão diferentes dela. (Tradução muito apressada nossa, com auxílio do Deepl)

Savigny parte de uma etimologia comum na Idade Média, que relacionava a palavra ao nome de Burcardo, bispo de Vórmia , e a sua obra conhecida como Decretorum Libri Viginti (“Vinte Livros dos Decretos”), ou Decretum Burchardi (“Decretos de Burcardo”).

Apesar disso, ao ler a Geschichte…, fica-se com a forte impressão de que Savigny talvez não tenha conhecido os Decretum Burchardi diretamente, só por comentários de terceiros. Daí não estar nas melhores condições para emitir juízo definitivo sobre o assunto. Eis a passagem que deixou esta impressão, onde Savigny prossegue no debate etimológico:

Dem Diplovatatius heisst der Verfasser der Decretensammlung Brocardus, und der Canonist Azo de Ramenghis sagt in der Einleitung seiner repetitiones: quam compilationem nominem auctoris sui burgordum scholastici vocaverunt. — Die Ableitung des *G. J. Vossius *. 4. p. 364: “protarchica, e.g., prima principia” hat menig Wahrscheinlichkeit. (Geschichte…, vol. 3, pp. 569-570, nota “h”, clicando aqui (em alemão) )

De acordo com Diplovataccio , o autor da coleção de decretos chama-se Brocardus, e o canonista Azão de Ramenghis diz, na introdução de suas Repetições : “compilação, batizada com o nome de seu autor, a quem os escolásticos chamavam de Burgard”. Tem pouca probabilidade a derivação de G[errit]. J[anszoon]. Vossius em De vitii sermonis Amst. 1645, 4, p. 364: “protarchica, e.g., prima principia”. (Tradução muito apressada nossa, com auxílio do Deepl)

Não foi possível encontrar no volume 3 da Geschichte…, nem nas copiosas referências fornecidas por Savigny ao final este volume, nenhuma menção direta a Burcardo de Vórmia, ou aos Decretum Burchardi.

Lendo um artigo de Stephan Kuttner publicado em 1949, tem-se a impressão de que não havia, realmente, como Savigny, escrevendo no século CIC ter conhecimento direto dos Decretum Burchardi:

The transmission of the original sources in the collections preceding Gratian has to be traced anew in the light of all the discoveries made by Fournier and others — a problem of fundamental significance for determining the genesis of Gratian’s text. It cannot be answered by a mere listing of the earlier testimonia, for we have to ascertain which of the intermediary collections that Gratian may have used he did put to use. But here it is necessary to remember that only a few among the earlier collections are available themselves in critical editions: of the indispensable works of Burchard of Worms and Ivo of Chartres we have only the worthless texts printed in Migne; the so-called Polycarpus and other collections of the early twelfth century which may have served Gratian are not printed at all. (The scientific investigation of mediaeval canon law: the need and the opportunity. Gratian and the schools of Law, 2ª ed., Londres e Nova Iorque: Routledge, 2018, p. 5)

A transmissão das fontes originais nas coleções anteriores a Graciano deve ser rastreada novamente à luz de todas as descobertas feitas por Fournier e outros — um problema de importância fundamental para determinar a gênese do texto de Graciano. A questão não pode ser respondida com uma mera listagem dos testemunhos anteriores, pois temos que verificar quais dentre as coleções intermediárias que Graciano pode ter usado, ele realmente usou. Mas aqui é necessário lembrar que apenas algumas das coleções anteriores estão disponíveis em edições críticas: das obras indispensáveis de Burcardo de Vórmia e Ivo de Chartres, temos apenas os textos sem valor impressos em Migne; o chamado Polycarpus e outras coleções do início do século XII, que podem ter servido a Graciano, não foram impressas. (Tradução nossa)

Stephan Kuttner refere-se à falta de edições críticas, o que não elimina a possibilidade de Savigny ter tido acesso a edições originais dos Decretum Burchardi. Mesmo assim, é estranho que na Geschicte…, no lugar e na discussão onde seria pertinente apresentar algum conhecimento sobre a vida e obra de Burcardo de Vórmia, Savigny tenha recorrido a fontes secundárias.

As fontes secundárias citadas por Savigny, aliás, parecem ir mais no sentido especulativo que do conhecimento direto da vida e obra de Burcardo. Com o material disponível, pouco ou nada se pode falar sobre o conhecimento de Tommaso Diplovataccio ou de Gerrit Janszoon Vos acerca de Burcardo de Vórmia. Por outro lado, é certo que Azão de Ramenghis, nas suas Repetitionen... , aparenta ter conhecimento de primeira mão dos Decretum Burchardi; ao tratar de seu autor, estranhamente, não afirma-lhe o nome, recorrendo à autoridade dos “escolásticos” para nomeá-lo, como se se tratasse de um escrito anônimo atribuído a alguém pela tradição.

Não é de estranhar que Savigny tenha sido cauteloso ao avaliar a tradição de radicar a etimologia de “brocardo” no nome ou na obra de Burcardo de Vórmia. No máximo, chegou a um non licet, ou seja, não se sentiu apto a dizer nem que sim, nem que não.

A “hipótese Savigny”, portanto, começa por afirmar como duvidosa a etimologia que atrela a origem da palavra “brocardo” ao nome de Burcardo de Vórmia.

Pílio de Medicina: primeiro a usar a palavra

Em vez de buscar outros caminhos capazes de explicar a origem da palavra “brocardo”, Savigny deixou a especulação de lado e partiu para outra linha de investigação: rastrear, nas fontes de que dispunha, os primeiros usos da palavra “brocardo”.

Diz Savigny que “Pillius foi o primeiro a usar o nome brocardos” (Geschicte, vol. 3, p. 569). Numa nota de rodapé, Savigny reforça que “é certo que o próprio Pillius deu à sua obra o título de brocardos, pois ela é citada com esse nome em glosas impressas e não impressas” (Geschichte, vol. 3, p. 569).

Pillius, como se infere do livro de Savigny, é Pillius Medicinensis, ou Pílio de Medicina , jurista e professor das escolas de Bolonha e Módena entre os séculos XII e XIII. Pouco se sabe de sua vida. Quando ensinava em Bolonha, por volta de 1175, publicou sua obra Liber disputatorius (“Livro das polêmicas”) — ou, em algumas edições, Libellus disputatorius (“Livreto dos disputadores”) — onde aplicou o método brocárdico de ensino jurídico:

Ora, apesar do pouco que se sabe da vida de Pílio, é certo que ele viveu entre os séculos XII e XIII, quase um século e meio depois da publicação dos Decretum Burchardi.

Não se deve, portanto, excluir completamente a hipótese de que, no tempo de Pílio, a palavra “brocardo” já houvesse adquirido parte do sentido de “regra” que ainda hoje tem.

Se Savigny houvesse investigado mais o caminho aberto por esta pista, talvez pudesse haver avaliado melhor a etimologia da palavra “brocardo”.

Como não o fez, avaliou mal a etimologia, dando a entender que descartou a hipótese mais provável sem substituí-la por outra, qualquer outra, por menos provável que fosse. Mas o assunto era bastante marginal em sua monumental Geschichte…, que em nada perte por um equívoco menor.

A hipótese de John Webster Spargo

A segunda hipótese, um tanto canhestra, é a do linguista estadunidense John Webster Spargo (1896-1956) , que escreveu um artigo de cinco páginas sobre as origens da palavra , publicado em 1948 na revista Speculum, da Academia Medieval da América .

Sua leitura muito parcial do non licet de Savigny levou-o a uma etimologia altamente especulativa, resumida a seguir de modo simples.

O “mau latim” de Burcardo

Spargo começa retornando a Savigny para rejeitar, quase sumariamente, qualquer investigação em torno da relação entre a palavra “brocardo” e a pessoa, e a obra, do bispo Burcardo de Vórmia.

Diz ainda, depois de uma leitura muito rápida e superficial dos dos Decretum Burchardi , que “o latim de Burcardo está bem distante, de fato, daquele compacto e arrumado latim das máximas jurídicas”, pois “frases bem redigidas e perfeitamente ritmadas estavam longe da mente de Burcardo ao escrever o seu tratado condensado de Direito canónico”.

Com isso, Spargo confessa, implicitamente, que buscava nos Decretum Burchardi o latim clássico da literatura romana (Plauto, Terêncio, Ênio, Virgílio, Lucílio, Cícero, Júlio César, Salústio, Catulo, Lucrécio, Horácio, Lívio, Petrônio, Marco Aurélio, Marcial, Juvenal, Tácito, Quintiliano, Apuleio, etc.), do Corpus Iuris Civilis Romanii e dos juristas da Lex citationum (Ulpiano, Gaio, Paulo, Papiniano, Modestino).

Só entre eles é possível encontrar “frases bem redigidas e perfeitamente ritmadas”, ou aquele “compacto e arrumado latim das máximas jurídicas”.

Em vez disso, ao ler os Decretum Burchardi John Webster Spargo encontrou o “impuro” latim medieval, já sob forte influência das línguas locais que lhes ditaram profundas mudanças no vocabulário, sintaxe e ortografia.

Errou, portanto, John Webster Spargo.

Burcardo não teria escrito brocardos

Se a distinção anterior derruba a objeção das “frases bem redigidas e perfeitamente ritmadas”, é de se observar a outra objeção de John Webster Spargo: a exigência de um “compacto e arrumado latim das máximas jurídicas”.

De fato, nos Decretum Burchardi há passagens muito longas, especialmente quando o assunto é de natureza teológica, ou quando Burcardo quer “passar um sermão” sobre certos assuntos para reforçar sua posição.

Entretanto, nos Decretum Burchardi não faltam máximas e passagens curtas.

Além disso, é falso que o Corpus Iuris Civilis , principal referência de John Webster Spargo para o “compacto e arrumado latim das máximas jurídicas”, seria composto somente por frases e regras resumidas.

Quem já se deu ao trabalho de enfrentar o Corpus Iuris Civilis sabe que ele, assim como os Decretum Burchardi e o próprio Corpus Iuris Canonici* , é uma coletânea que, para facilitar a consulta, reuniu num só lugar:

No Corpus Iuris Civilis tanto se encontram frases curtas quanto passagens muito longas, das quais os operadores do Direito, em seu tempo, extraíram passagens curtas, sintéticas, fáceis de memorizar. Um exemplo, sem tradução, com o brocardo em destaque:

Ulpianus libro septimo de officio proconsulis. Si cui crimen obiciatur, praecedere debet crimen subscriptio quae res ad id inventa est, ne facile quis prosiliat ad accusationem, cum sciat inultam sibi accusationem non futuram. Cavent itaque singuli, quod crimen obiciant, et praetera perseveraturos se in crimine usque ad sententiam. Isdem criminibus, quibus quis liberatus est, non debet praeses pati eundem accusari, et ita divus Pius Salvio Valenti rescripsit: sed hoc, utrum ab eodem an nec ab alio accusari possit, videndum est, et putem, quoniam res inter alios iudicatae alii non praeiudicant, si is, qui nunc accusator exstitit, suum dolorem persequatur doceatque ignorasse se accusationem ab alio institutam, magna ex causa admitti eum ad accusationem debere. Si tamen alio crimine postuletur ab eodem, qui in alio crimine eum alumniatus est, puto non facile admittendum eum qui semel calumniatus sit: quamvis filium accusatoris admitti oportere aliam accusationem instituentem adversus eum, quem pater accusaverat divus Pius Iulio Candido rescripsit. Idem imperator respcripsit servos ibi puniendos, ubi deliquisse arguantur, dominumque eorum, si velit eos defendere, non posse revocare in provinciam suam, sed ibi oportere defendere, ubi delinquerint. Cum sacrilegium admissum esset in aliqua provincia, deinde in alia minus crimen, divus Pius Pontio Proculo rescripsit, postuam cognoverit de crimine in sua provincia admisso, ut reum in eam provinciam remitteret, ubi sacrilegium admisit. ( Digesto, livro 48, título 2, parágrafo 7, parte 2 )

Tudo isso para dizer que “não se deve acusar outra vez pelo mesmo crime alguém que dele tenha sido inocentado” (nossa tradução grosseira do brocardo). No Corpus Iuris Civilis não faltam exemplos no mesmo sentido: trechos muito longos contendo frases tornadas célebres pelos manuais de Direito do século VI em diante, em especial a partir do século XII.

Se o Corpus Iuris Civilis é uma “colcha de retalhos” muito bem costurada, por recolher e sistematizar numa só obra regras de outro modo contraditórias, o brocardo é um “retalho do retalho”.

Ora, se o Corpus Iuris Civilis não é só uma coleção de adágios, máximas e ditados, mas uma coletânea de trechos de obras de juristas romanos célebres; se nesta coleção entraram tanto pequenas frases como páginas inteiras das obras originais; não é correto, como fez John Webster Spargo, descartar sumariamente a hipótese etimológica que liga a palavra “brocardo” ao nome e obra de Burcardo de Vórmia, por não apresentar em seus Decretum Burchardi uma coleção de “frases bem redigidas e perfeitamente ritmadas”.

Na verdade, é muito raro encontrar-se nas obras jurídicas produzidas na Europa medieval uma coleção “pura” de brocardos. As frases lapidares, excelente recurso mnemotécnico, andam sempre junto de trechos mais longos, onde certos assuntos são tratados com maior cuidado e elaboração argumentativa.

È esta expectativa um tanto pueril que leva Stephan Kuttner, estudioso do Direito europeu medieval, a dizer: “é de se perguntar se o sr. Spargo já leu algum livro de brocardos da época dos glosadores” (“Réflexions sur les brocards des glossateurs”, em Gratian and the schools of Law, 2ª ed., Londres e Nova Iorque: Routledge, 2018, p. 252).

Errou duas vezes, portanto, John Webster Spargo. Abandonou a hipótese mais evidente, lastreável em fatos que permitiriam avançar na investigação com bastante segurança e rigor, em favor da pura especulação.

Broc- + -ard = brocard

A palavra “brocardo”, diz Spargo, é composta por duas partes: “broc-” e “-ard”.

Broc-, diz Spargo, está na origem da palavra badger (texugo), animal de pelo com cores relativamente intistintas cujo nome, por sua vez, Spargo diz originar-se do celta primitivo broccos, que, ainda segundo Spargo, vem do grego φορκóσ (forkós, “cinza”).

Do “cinza”, Spargo diz que “uma raiz cujo significado original é ‘de cor variada, sem sombreado nítido’ é aplicada pelos celtas a um animal cujo pelo é apropriadamente dscrito como ‘de cor variada, sem sombreado nítido’ e, ao deambular pela Inglaterra e pela Europa continental, é aplicada a formas jurídicas de origem compósita, tendo, de fato, nenhuma coloração nacional, mas assumindo várias colorações, como o pelo do texugo”.

-Ard, diz Spargo, vem do francês antigo -ard, por sua vez oriundo do alemão antigo -hart / -hard, em ambos os casos um sufixo para nomes próprios (p. ex., Leonardo, Gerardo, Gotardo, Abelardo, etc.).

Com base nisso, Spargo afirma que “o fato de o sufixo -ard ter sido usado num sentido pejorativo dá algum suporte à nova etimologia, pois os brocardos antigos eram afirmações gerais de Direito Canônico estranhas, simplórias e inábeis, feitas por pessoas que, obviamente, compreendiam muito mal este tipo de Direito e eram, ao mesmo tempo, tão malversadas em latim que não conseguiam redigir suas generalizações em bom latim”.

Esta hipótese foi sumariamente rejeitada por Stephan Kuttner como “livresca”, ao que Leo Spitzer adicionou: “nem mesmo aprendemos, com os termos elásticos do sr. Spargo […], o idioma específico (inglês, francês, latim?) para o qual a transferência semântica e a adição do sufixo teriam ocorrido” (Latin médiéval brocard(ic)a > français brocard . Modern Language Notes, vol. 70, nº 7, nov. 1955, pp. 502).

A hipótese de Hermann Kantorowicz e Stephan Kuttner

A terceira hipótese, bem mais simples porém equivocada, é a de Hermann Kantorowicz (1877-1940) , expoente da chamada “Escola do Direito Livre” e estudioso do Direito medieval europeu.

Pro et contra > procontra > brocarda

Num longo artigo de 1939 onde revisou, sistematizou e discutiu um método de argumentação usado por juristas medievais europeus, conhecido como quaestiones disputatae (“assuntos discutidos”), registrado em inúmeros livros, hoje raríssimos, ainda existentes em certos arquivos.

O interesse de Kantorowicz estava no caráter pedagógigo destas obras, que, para ele, pareciam refletir uma prática de ensino por meio de “júris simulados” nas faculdades de Direito medievais.

Comentando os títulos destes livros, disse Kantorowicz:

It is noteworthy that one of the masters of this literary type, Pillius, writing in the last years of the 12th century, used to call the collection of his questions brocarda; for we have good reason to believe that the mysterious word procarda (which seems the earlier spelling) is nothing but a facetious distortion of procontra, due perhaps to students’ slang. (The Quaestiones Disputatae of the glossators . Tijdschrift voor Rechtsgeschiedenis / Revue d’histoire du droit / The Legal History Review, vol. 1, nº 16, 1939, p. 4)

É digno de menção que um dos mestres deste tipo de literatura, Pílio, escrevendo nos últimos anos do século XII, costumava chamar este tipo de coleção de brocarda [brocardos]; por isso, temos boas razões para acreditar que a misteriosa palavra procarda (que parece ter sido sua grafia anterior) não é nada além de uma distorção brincalhona de procontra [“a favor” e “contra”], devido talvez à gíria dos estudantes. (Tradução nossa)

Esta é a única passagem no longo artigo Kantorowicz em que ele discute a etimologia da palavra “brocardo”. Não dá outras pistas para a origem da palavra além de referir-se a Pillius Medicinensis, ou Pílio de Medicina , e da menção às suas “boas razões”.

Não parece que Kantorowicz tenha ido além de uma especulação, aliás infeliz.

Acontece que outro estudioso do Direito medieval europeu, Stephan Kuttner (1907-1996) , gostou da hipótese de Kantorowicz. Num artigo de 1951, disse Kuttner, depois de seguir Savigny na rejeição da etimologia que explicava a origem da palavra pelo nome do bispo Burcardo de Vórmia:

O fato é que a palavra às vezes é escrita procard(ic)a; e o acréscimo vulgo, vulgariter com o qual o termo é acompanhado mais de uma vez mostra que se trata, de fato, de uma expressão de jargão. (“Réflexions sur les brocards des glossateurs”, em Gratian and the schools of Law, 2ª ed., Londres e Nova Iorque: Routledge, 2018, p. 252)

Este “reforço” de Kuttner ao palpite de Kantorowicz foi refutado magistralmente por Leo Spitzer, cujos fortes e convincentes argumentos — reconhecidos por Kuttner, que acolheu e assimilou a crítica — serão apresentados a seguir.

A hipótese de Leo Spitzer

Em seu artigo Latin médiéval brocard(ic)a > français brocard (Modern Language Notes, vol. 70, nº 7, nov. 1955, pp. 501-506), o linguista Leo Spitzer (1887-1960) , um dos fundadores da linguística comparativa, apresenta uma hipótese engenhosa e factível, mas também incerta.

Refutando Kantorowitz e Kuttner

Spitzer começa o artigo citando longamente o artigo de Stephen Kuttner citado, e sua argumentação em favor da etimologia de Kantorowicz.

Em seguida, rebate os argumentos, pois “as dificuldades levantadas por esta hipótese são insuperáveis”.

Morto Kantorowicz, Kuttner acolheu bem a crítica, e recuou de sua hipótese.

Broccus: as palavras que ferem

Spitzer apresenta como alternativa uma hipótese interessante, factível, mas também problemática.

Também descartando a linha de investigação que radica a origem da palavra no nome de Burcardo de Vórmia, Spitzer busca significados diferentes da palavra “brocardo”, em busca de possíveis raízes etimológicas.

Em francês, brocardo escreve-se da mesma forma que brocard (“gozação mordaz”, “zombaria”, “sarcasmo”) e brocarder (“galhofar”, “zombar”). Sua origem comum é a palavra latina broccus, que significa “de dentes/lábios salientes” e, por derivação, “ponta”, “ferrão”, “pontudo”, “pontiagudo”, etc.

(Comparativamente, a palavra latina broccus é a origem das palavras portuguesas “broca” e “brocar”.)

Aferrando-se ao significado de broccus como algo “picante”, “pontiagudo”, Spitzer retorna ao “método brocárdico” de Pílio de Medicina, dizendo, pela semelhança com um debate cheio de “zombarias” e “gozações”, e do sentido de “ponta”, “ferrão”, etc., que a origem etimológica latina casa bem com os debates jurídicos medievais.

É uma hipótese plausível. Acontece que, tal como na hipótese de Spargo, é uma hipótese livresca, especulativa, dedutiva; faltou-lhe a carne dos fatos para sair do mundo das ideias.

Ernst Meyer , cuja hipótese será vista a seguir, descartou a argumentação de Spitzer com uma observação simples: de fato, broccus deu origem a várias palavras que guardam o significado de “pontiagudo”, “pontudo”, etc. Entretanto, esse significado só surgiu na língua francesa (como admite Spitzer) por volta do século XV, quando brocardus/brocarda já tinha o sentido de “regra geral” em escritos do século XI.

A hipótese de Ernst Meyer

A hipótese apresentada pelo historiador alemão Ernst Meyer (1898-1975) em seu artigo Brocardica (Zeitschrift der Savigny-Stiftung für Rechtsgeschichte. Kanonistische Abteilung, vol. 38, nº 1, pp. 453-473) nos parece a mais completa e factível, pois retorna para os fatos e robustece a linha de investigação dada como “incerta” por Savigny.

Sinais da autoridade de Burcardo de Vórmia

Ao contrário de Savigny, Ernst Mayer não tem dúvidas ao afirmar que a palavra “brocardo” vem do nome do bispo Burcardo de Vórmia.

Em primeiro lugar, apresenta muitas referências abreviadas ao nome de Burcardo e sua obra, presentes nos livros de vários juristas medievais. Meyer apresentou algumas das oitenta e três referências a Burcardo encontradas num dos livros de Graciano , considerado “pai do Direito canônico”:

ut Β. L.C.. [como em B. Liv. Cap.]

ut in libro Β. invenitur [como encontrado no livro B.]

ut in Burchardo I. XIX invenitur [como encontrado em Burchardo I. XIX]

In Burchardo habetur [existente em Burchardo]

In Burch. etiam invenitur [também encontrado em Burc.]

in eodem B. capitulo [no mesmo capítulo B.]

in secundo libro Burch. [no segundo livro de Burch.]

in supra designato c. Β. diximus [no acima designado cap. B. dissemos]

illud Brocardi per hoc decretum Gelasii penitus abrogatur [este decreto de Brocardo foi completamente revogdo pelo decreto de Gelásio]

in Brocardo libro XIX c. [em Brocardo, livro XIX, cap.]

quod est in Brocardo I. XIX c. [que está em Brocardo I. XIX cap.]

ex praefato cap. Burchardi [do capítulo acima mencionado de Burchardo]

Mayer chama a atenção para o fato de que tal citação nominal não era comum, pois reservadas aos papas, aos concílios (Niceia, Constantinopla, Éfeso, Calcedônia, Latrão, Lyon, Viena, etc.) e aos “padres da Igreja” (Ambrósio de Milão, Jerônimo de Estridão, Agostinho de Hipona, Gregório Magno, Tertuliano, etc.).

Por este critério, os Decretorum Libri Viginti de Burcardo de Vórmia tinham enorme autoridade no período analisado.

Raízes históricas da sinédoque Burcardo > brocardo: a difusão da obra

As menções aos livros de Burcardo por meio de sinédoque , vistas acima, consolidou a mistura entre o nome da obra e o nome do autor.

Mas Mayer vai além. Segundo ele, os Decretorum Libri Viginti também eram conhecidos como Decretum Burchardi (“Decretos de Burcardo”), ou simplesmente “o Burcardo”, como nestes casos:

quod a nomine ipsius Burchardus denominaturii (Sigeberto de Gembloux, 1030-1112, De scriptoribus ecclesiasticis)

nomine auctoris sui burgordum scholastici vocaverunt (Azão de Ramenghis, 1150-1225, Repetitiones)

Tal sinédoque só é possível quando uma obra de referência, além de ter forte autoridade, se torna muito difundida e conhecida. Do contrário, ninguém saberia ao quê a sinédoque se refere.

Para demonstrar a difusão da obra, será aberto um breve parêntese na argumentação de Ernst Meyer, pois ele não trata do assunto.

François Gagnon , que escreveu uma dissertação com tradução do livro XIX dos Decretum Burchardi para o francês, diz que seu valor histórico decorre de que “as regras são baseadas no direito canônico que é aplicado na prática. Elas não são prescrições teóricas ou especulações ideais sobre como a sociedade deveria ser. O objetivo é indicar como as pessoas devem ser orientadas e corrigidas para que a piedade e a caridade cristã prevaleçam. O objetivo é indicar como as pessoas devem ser orientadas e corrigidas para que a piedade e a caridade cristã prevaleçam”.

Este caráter pragmático dos Decretum Burchardi asseguraram sua rápida difusão. Segundo a historiadora Lotte Kéry , especialista em Direito Canônico medieval, nos anos 1990 existiam ainda em bibliotecas e arquivos especializados setenta e sete cópias completas da obra, e outras trinta e nove de forma resumida ou parcial (Canonical collections of the early Middle Ages (ca. 400-1140): a bibliographical guide to the manuscripts and literature. Washington: Catholic University of America Press, 1999, p. 134-148).

Com esses números em mente, não se pode esquecer que:

Fechando este parêntese, fica demonstrado que, além de terem autoridade, os Decretum Burchardi eram muito difundidos, conhecidos e mesmo “populares” entre o clero católico da Europa medieval.

Os brocardos de Burcardo

Meyer afirma, e uma leitura dos Decretorum Libri Viginti confirma, que Bucardo precedia cada capítulo por uma frase, espécie de resumo, como as seguintes:

Quod nulli sacerdotum cánones liceat ignorare. (Livro II, cap. 160: “Para que nenhum sacerdote ignore os cânones”)

Ut res finita refricari non debeat. (Livro XVI, cap. 9: “Que assuntos encerrados não se devem repetir”)

Ut nemo absens dijudicetur. (Livro XVI, cap. 13: “Que ninguém seja julgado à revelia”)

Segundo Meyer, é possível que estas abreviações tenham sido favorecidas como regras nos meios eclesiásticos, especialmente via transmissão oral. Adicionamos: tal como nas fórmulas resumidas do Corpus Iuris Civilis Romanii , é mais fácil decorar frases que livros inteiros.

Com o tempo, diz Meyer, é possível que não se tenha mais conseguido associar o nome “Burcardo” a uma pessoa, e a palavra teria passado a designar as próprias regras.

A influência de Burcardo passa do Direito canônico ao secular no século XII

Como a separação entre Direito canônico e secular ainda não era tão demarcada nas escolas e universidades onde se aprendiam as leis na Idade Média europeia, Meyer enfrentou a hipótese de a palavra “brocardo” ter sido usada também no contexto do ensino do Direito.

Para Meyer, a passagem dos “brocardos” de um campo para o outro aconteceu especialmente a partir do século XII, quando talvez já não fosse mais possível associar o nome de Burcardo a uma pessoa, mas às regras.

Quando os “brocardos” chegam até Pílio de Medicina, professor de Direito na escola de Bolonha no século XII, este esmaecimento já teria acontecido.

Daí em diante, diz Meyer, foi atribuído a palavra “brocardo” tanto o significado atual quanto aquele novo significado criado por Pílio de Medicina.

A melhor hipótese, mesmo com falhas

Ao expor esta hipótese, quase tudo foi no condicional: “teria acontecido”, “talvez fosse possível”, etc.

Apesar do enorme esforço de leitura das fontes, o próprio Ernst Meyer, apesar de afirmar que “a sobrevivência consciente e ininterrupta de Burchard e da sua obra com o seu nome na canonística até às Decretais de Gregório está assim suficientemente estabelecida”, é categórico em afirmar que há pontos fracos em sua argumentação, que só conseguiu “esclarecer as origens do brocardo” e “colocá-lo num contexto mais geral da história intelectual europeia e do desenvolvimento jurídico”.

Ainda seria necessária muita pesquisa em fontes primárias — “impossível de alcançar atualmente”, segundo Meyer — para passar de uma hipótese com forte verossimilhança a uma certeza absoluta e comprovada.

Entretanto, a hipótese de Ernst Mayer, ao analisar pormenorizadamente as fontes disponíveis e produzir uma narrativa coerente com aquilo que era verossímil para o período analisado, parece ser a melhor explicação para a origem da palavra “brocardo”.

Conclusão: os brocardos vêm mesmo de Burcardo de Vórmia

Depois de analisar os argumentos e as hipóteses, parece muito sólida a hipótese de Ernst Mayer que, retomando a etimologia mais comum durante a própria Idade Média europeia, resgata-a do esquecimento onde Savigny a havia lançado, e qualifica-a com leitura de fontes primárias.

Naquilo que é possível reconstruir com fontes tão esparsas, é a hipótese que mais longe permite chegar sem passar dos limites e avançar rumo à pura especulação.

Com isso, entendemos que a origem da palavra “brocardo” é dupla:

Extra 1: afinal, quem foi Burcardo de Vórmia?

Estátua de Burcardo de Vórmia, na catedral de São Pedro, Vórmia, Alemanha.
Estátua de Burcardo de Vórmia, na catedral de São Pedro, Vórmia, Alemanha. Fonte: Wikipédia.

O bispo Burcardo de Vórmia nasceu em 950 EC na região setentrional do Hesse, então parte do Sacro Império Romano-Germânico e hoje situada no Estado da Renânia-Palatinado, na Alemanha. Era membro da família dos condes de Reichenbach-Ziegenhain, representantes da Hofkapelle (“capela real”) e conselheiros eclesiásticos de alta dignidade dos imperadores.

Com as facilidades do berço, não foi difícil a Burcardo ser enviado ainda muito jovem para estudar numa escola monástica em Coblença (Koblenz), onde tornou-se cônego da catedral.

Ávido por conhecimento, Burcardo viajou para Mogúncia (Mainz), onde passou a estudar sob a orientação do bispo Willigis de Mogúncia , que lhe deu sólida formação clássica (gramática, astronomia, retórica e oratória, lógica, aritmética, geometria, música, literatura grega e latina, etc.). Ainda em Mogúncia, Burcardo escalou todos os degraus da carreira eclesiástica até se tornar diácono em e, com o tempo, bispo primaz de Mogúncia.

Por fim, no ano 1000 EC, o imperador Otão III nomeou Burcardo bispo de Vórmia (Worms), onde fez fama.

Burchardo morreu em 1025 EC, dois anos depois de terminar sua obra mais conhecida.

A atuação de Burcardo em Vórmia

Vórmia (Worms) havia sido uma das mais importantes cidades do Sacro Império Romano-Germânico. Sob o império de Carlos Magno, havia sido o local de um dos palácios reais. A cidade já havia sido palco de um importante sínodo em maio de 868 EC, e suas muralhas haviam sido reconstruídas por volta do ano 900 EC.

O bispado de Vórmia, criado em 614 EC, não era somente uma posição religiosa: no complexo sistema senhorial do Sacro Império Romano-Germânico, o bispo de Vórmia era também um príncipe-eleitor, acrescentando à autoridade espiritual de bispo os poderes seculares de um senhor feudal.

Acontece que Vórmia, quando Burcardo foi nomeado seu bispo em 1000 EC, estava em decadência. Dizem os cronistas da época (em especial o Biógrafo anônimo de Burcardo) que suas muralhas arruinadas não protegiam a cidade contra ataques de bandidos, ou mesmo contra lobos.

Burcardo começou a trabalhar pela reconstrução da cidade: liderou a reconstrução das muralhas, instituiu monastérios e igrejas, e trabalhou pela destruição das fortificações do duque Otão da Caríntia , adversário político de longa data, de quem suspeitava que abrigasse bandidos em seus domínios. Burcardo mandou também reformar e aumentar a catedral de Vórmia , dedicada ao apóstolo Pedro.

Com o tempo, Vórmia retomou sua vida normal, e voltou a se tornar uma das mais importante cidades do Sacro Império Romano Germânico.

Diz o historiador François Gagnon que Burcardo integrou o amplo movimento dos bispos otonianos e salianos no fim do século X em favor da renovação monástica e canônica. Como parte deste esforço, Burcardo dedicou-se a ensinar na escola catedralícia de Vórmia, contribuindo com a formação de novos cônegos.

Preocupado também com questões de justiça, Burcardo promulgou as Leges et Statuta Familiae S. Petri Wormatiensis (“Leis e estatutos da família de São Pedro de Vórmia”), da qual traduzimos o preâmbulo a seguir (com nosso latim precário):

In nomine sanctae et individue Trinitatis. Ego Burchardus Wormatiensis ecclesiae episcopus propter assiduas lamentationes miserorum et crebras insidias multorum, qui more canino familiam sancti Petri dilacerabant, diversas leges eis imponentes et infirmiores quosque suis iudiciis opprimentes, cum consilio cleri et militum et totius familiae has iussi scribere leges, ne aliquis advocatus seu vicedominus aut ministerialia sive inter eos alia aliqua loquax persona supradicte familie novi aliquid subinferre posset, sed una eademque lex diviti pauperi ante oculos prenotata omnibus esset communis.

Em nome da santa e una Trindade. Eu, Burcardo, bispo da igreja de Vórmia; pelas constantes lamentações dos pobres e pelas frequentes conspirações de muitos que, como cães, despedaçavam a família de São Pedro, impondo-lhes leis diferentes e oprimindo os mais fracos com os seus julgamentos; com o aconselhamento do clero, dos militares e de toda a família; ordenei que estas leis fossem escritas, para que nenhum advogado, vice-rei, ministros ou outra pessoa eloquente entre eles pudesse trazer algo de novo para a referida família senão uma única e mesma lei que, apresentada aos olhos dos ricos e dos pobres, fosse comum a todos.

O mesmo espírito de legislador levou Burcardo a reunir numa só obra as regras, normas, leis e princípios básicos do Direito Canônico — eis aí a origem dos famosos Decretum Burchardi.

Extra 2: visão geral dos Decretum Burchardi (“Decretos de Burcardo”)

A obra que tornou Burcardo mais conhecido fora dos limites de Vórmia são os Decretorum Libri Viginti (“Vinte Livros dos Decretos”), mais conhecidos com Decretum Burchardi (“Decretos de Burcardo”), compilados entre 1012 e 1021 com o auxílio de Válter, bispo de Espira (Speyer) , Alberto, bispo de Métis (Metz) , o proboste Brunicho de Vórmia e pelo menos outros três clérigos proeminentes na região.

Burcardo, segundo seu biógrafo anônimo, dedicou-se a esta obra de compilação por considerar que “as leis dos cônegos e a justiça da penitência foram completamente negligenciadas e destruídas em seu episcopado”.

Os Decretum têm, como o nome indica, vinte livros:

  1. De primatu ecclesiae (“Sobre o primado da Igreja”)
  2. De sacris ordinibus (“Sobre ordens sagradas”)
  3. De aeclesiis (“Sobre congregações”)
  4. De baptismo (“Sobre batismo”)
  5. De eucharistia (“Sobre Eucaristia”)
  6. De homicidiis (“Sobre homicídios”)
  7. De consanguinitate (“Sobre consanguinidade”)
  8. De viris et feminis Deo dicatis (“Sobre homens e mulheres dedicados a Deus”)
  9. De virginibus et viduis non velatis (“Sobre virgens, e viúvas não veladas”)
  10. De incantatoribus et auguribus (“Sobre encantadores e aúgures)
  11. De excommunicandis (“Sobre aqueles a excomungar”)
  12. De periurio (“Sobre o perjúrio”)
  13. De ieiunio (“Sobre o jejum”)
  14. De crapula et ebrietate (“Sobre gula e embriaguez”)
  15. De laicis (“Sobre laicidade”)
  16. De accusatoribus (“Sobre acusadores”)
  17. De fornicatione (“Sobre fornicação”)
  18. De visitatione infirmorum (“Sobre a visitação aos enfermos”)
  19. De paenitentia (“Sobre a penitência, também conhecido como Corrector Burchardi)
  20. De speculationum liber (“Livro sobre especulações”)

A lista de referências nos Decretum Burcardi é imensa.

Além da própria Bíblia e dos relatos dos concílios de Toledo (I-IV e VI-XII), Orleãs (I e III-V), Mogúncia (I-III) e Vórmia (868), os historiadores Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFRJ) e Renan Marques Birro (UPE) listam as seguintes obras citadas por Burcardo: Statuta Ecclesias antiqua (c.476-485); Canones apostolici (c.390, traduzidos ao latim pelo próprio Burcardo); Collectio Dionysio-Hadriana (774); Capitula Angilramni (c.790); Capitularia Benedictae Levitae (c.850); Decretales Pseudo-Isidorianae (847-852); Collectio Anselmo dedicata (c.882); Collectio Regionis Prumiensis (c.906); Paenitentiale mixtum Pseudo-Bedae-Egberti (c.870-880); Excarpsus Cummeani (c.700); Paenitentiale Bedae (c.800); Paenitentiale Egberti (c.800); Paenitentiale Hubertense (c.800-825); Paenitentiale Martenianum (c.850); Paenitentiale Remense (c.700-725); Paenitentiale Theodori (c.800); Collectio Hibernensis (c.700); Collectio Canonum Anselmi Lucensis; os Dialogi de Gregório Magno (c.590-604); e Da doctrina Christiana, do bispo Agostinho de Hipona.

Burcardo teve o trabalho de reunir, numa só obra, regras e princípios produzidos com séculos de distância entre si. Para chegar a um resultado satisfatório, Burcardo deve tê-los alterado e modificado bastante, introduzindo várias interpretações pessoais para evitar contradições e incongruências — como passou a ser, aliás, a prática dos compiladores de regras depois do Corpus Iuris Civilis Romanii .

A natureza enciclopédica do Decretum Burchardi fez dele uma fonte de consulta sobre Direito Canônico e de metodologia de interpretação de regras.

Ivo de Chartres , autor dos Decretum (17 vols.), da Tripartita (3 vols.) e da Panormia (8 vols.), escreveu um famoso “Prólogo” sobre interpretação de leis, cuja inspiração parece ter sido o trabalho de Burcardo. Diz Christian Rolker (Canon Law…, p. 100 passim) que “os Decretum de Ivo contém os Decretum de Burcardo quase na íntegra”, e que o número dos cânones de Burcardo não encontrados na coletânea de Ivo é bem menor que o anteriormente assumido por outros estudiosos do tema.

Também Graciano , considerado o “pai do Direito Canônico”, recorreu aos Decretum Burchardi ao escrever sua Concordia discordantium canonum, aproveitando-lhe o conteúdo e o método de interpretação. No texto principal deste artigo, viu-se como Ernst Meyer, leitor de Graciano, encontrou oitenta e três referências a Burcardo num só dos livros de Graciano.

Por meio de Ivo e Graciano, as regras dos Decretum Burchardi chegaram até o Corpus iuris canonici (“Corpo do Direito dos canônicos”), que permaneceu em vigor nos meios católicos (mesmo não sendo uma coletânea oficial) até o século XX, em 1917. Quem lê a edição Richter do Corpus…, por sinal, encontra muitas referências diretas aos Decretum Burchardi como fonte das informações e regras apresentadas no corpo do texto.

Alguns brocardos do livro XVI dos Decretum Burchardi

Como o livro XVI dos Decretum Burchardi trata dos acusadores e testemunhas (“De accusatoribus et testibus”), traduzimos (muito apressadamente) alguns trechos dele, pois o assunto é de interesse para estudiosos das origens do Direito, e do Direito Canônico em especial.

Judex criminosum discutiens, non ante sententiam proferat finitivam quam aut reus ipse confiteatur, aut per testes idoneos convincatur. (Decretum Burchardi, livro XVI, capítulo X)

O juiz, ao discutir o crime, não pronuncia a sentença definitiva até que o próprio acusado confesse, ou seja convencido por testemunhas idôneas. (Tradução nossa)

De his criminibus de quibus absolutus est accusatus, refricari accusatio non potest. (Decretum Burchardi, livro XVI, capítulo X)

Dos crimes dos quais um acusado foi absolvido, não se pode repetir a acusação. (Tradução nossa. Sobre este assunto, vale conferir nosso artigo sobre a história do direito a não ser demandado mais de uma vez pela mesma causa .)

Si falsi testes separantur, mox mendaces inveniuntur. (Decretum Burchardi, livro XVI, capítulo XII)

Se as falsas testemunhas forem separadas, os mentirosos serão logo descobertos. (Tradução nossa)

Furor in judice, investigationem veri non valet atingere: quia mens ejus turbata furore, ab inscrutatione alienatur justitiae. (Decretum Burchardi, livro XVI, capítulo XXVII)

A fúria, num juiz, não é válida para buscar a verdade: sua mente, porque perturbada pela fúria, está alienada do escrutínio da justiça. (Tradução nossa)

Qui recte judicat et praemium remunerationis expectat, fraudem in Deo perpetrat: quia justitiam quam gratis impartiri debet, acceptione pecuniae vendit. (Decretum Burchardi, livro XVI, capítulo XXVIII)

Quem julga corretamente e espera uma remuneração como prêmio, perpetra fraude contra Deus, porque vende por dinheiro a justiça que deveria ser gratuita. (Tradução nossa)

Ejus qui frequenter litigat, et ad accusandum est facilit, accusationem nemo absque grandi examine accipiat. (Decretum Burchardi, livro XVI, capítulo XXXII)

Que ninguém aceite sem grande exame as acusações de quem litiga com frequência e acusa com facilidade. (Tradução nossa)

O Corrector Burchardi

Os historiadores Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFRJ) e Renan Marques Birro (UPE) traduziram para o português o livro XIX dos Decretum Burchardi, conhecido como Corrector Burchardi (“O corretor de Burcardo”).

Nas palavras do próprio Burcardo, o Corrector “contém plenamente correções para o corpo e remédios para a alma, e ele ensina a cada clérigo, até mesmo os simples, como pode vir a ajudar outrem: ordenado ou sem ordens, pobre, rico, garoto, jovem, senil, decrépito, saudável ou doente, de qualquer idade e de ambos os sexos”.

Não é livro de grande especulação teológica, mas uma obra de resumo, cheia de orientações práticas. Burcardo havia sido pastor de homens antes de se dedicar à reflexão. Sua experiência nos afazeres cotidianos das paróquias onde atuou certamente influiu na sua forma de escrever o Corrector Burchardi.

Neste livro, ensinou as regras gerais do ritual de penitência e indicou em fórmulas simples, em alguns casos sob a forma de perguntas e respostas, uma penitência para cada um dos casos que apresentava. Eis algumas das regras do Corrector Burchardi, retiradas da tradução feita por Álvaro Alfredo Bragança Júnior e Renan Marques Birro:

Cometeste um homicídio por vingança de seus parentes? Se fizeste, tu farás penitência por quarenta dias, que se chama carina [quaresma], pelos sete anos seguintes, pois o Senhor disse: “A mim pertence a vingança, eu é que retribuirei”.

Se cometeste homicídio contra a vontade, de maneira que, em tua ira, quiseste bater em alguém não para matar, mas ele morreu, deves penitência por 40 dias a pão e água, isto é, carina, pelos sete anos subsequentes. Mas no primeiro ano tu poderás redimir a terça-feira, a quinta-feira e o sábado com apenas um denário, ou o valor de um denário, ou ao alimentar três pobres. Entretanto, nos seis outros anos, observarás [o jejum] para o homicídio cometido por sua própria vontade, conforme está constituído. […]

Porém, se ias para floresta com irmão ou amigo teu para o corte das árvores e aproximando-se de uma árvore a ponto de cair disseste a teu irmão ou sócio para fugir e ele, ao fugir, foi esmagado pela árvore, és inocente desta morte.

Porém, se por descuido ou negligência uma árvore caiu enquanto ele estava junto contigo e tu não teves tempo para adverti-lo, de forma que não previu a queda daquela, e deste modo por teu descuido ele foi esmagado e morto, tu deves penitência por um homicídio, mas muito mais leve do que por um homicídio voluntário. […]

Mataste um gatuno ou ladrão, conquanto pudesse prendê-lo sem matá-lo, mas, entretanto, o mataste? Pois foste criado à imagem de Deus e em seu nome foi batizado e pelo seu sangue redimido, 40 dias não entrarás na igreja nem vestirás roupas de lã; abster-te-ás nos supraditos dias de alimentos e bebidas que [te] são interditos, do leito, do gládio e da equitação. Porém, na terça-feira, na quinta e no sábado poderás ingerir moderadamente qualquer gênero de legumes, ou vegetal e frutas, ou pequenos peixes com uma normal quantidade de cerveja. No entanto, se sem premeditar, mas liberando o teu ódio mataste um membro do diabo, digo, conforme a indulgência e a imagem de Deus, se quiseres jejuar, isto é bom para ti e distribua esmolas largamente. Se um padre fizer o mesmo, não será deposto, mas fará penitência enquanto viver. […]

Fizeste perjúrio por cupidez? [Deves penitência por] 40 dias a pão e água, que o povo chama de carina, e observarás os sete anos seguintes como é de costume. E enquanto viveres, jejuarás todas as sextas-feiras a pão e água. E se desejas redimir-te, podes redimir-te com um denário, ou o valor de um denário, ou ao alimentar três pobres. Porém, o Penitencial Romano instrui: se aquele que por cupidez perjurar, que venda todas as suas coisas e distribua aos pobres, e ingresse no mosteiro, além de submeter-se a penitência. […]

Penetraste à força a casa de algum cristão durante a noite e tolheste seus quadrúpedes, isto é, um cavalo, um boi, ou outro desses animais, ou [ainda] outra coisa que vale mais que quarenta moedas de ouro, devolvas o valor e deves penitência por um ano nos dias estabelecidos. Porém, se não devolveres, deves penitência por dois anos nos dias estabelecidos. Se fizeste roubo maior, deves uma penitência maior. E se fizeste com frequência, deves aumentar a penitência tantas vezes mais [quanto fizeste]. Se fizeste um roubo pequeno, deves penitência por dez dias a pão e água; as crianças penitenciarão por cinco dias a pão e água.

Se fizeste rapina, deves grave penitência: pois é mais miserável é aquele que rouba com violência [do que] aquele furta quem está dormindo ou ausente. Se furtaste por necessidade, como digo, pois não tens onde viver, e pela penúria da fome, e furtaste o sustento fora da igreja, e não o fizeste por costume, devolva o que tolheste e faça três sextas-feiras de penitência a pão e água. Porém, se não podes devolver, dez dias de penitência a pão e água. […]

Cometeste adultério com a esposa de outro e tu não tens esposa? Farás penitência de 40 dias a pão e água, o que em língua comum é chamado de carina, pelos próximos sete anos.

Se tu és casado e cometeste adultério com a esposa de outro, de modo que satisfizeste tua libido, deves penitência de duas carinas, com quatorze anos sequenciais: uma por ter tido outra à revelia de tua esposa, e outra por adultério, que nunca deve existir sem penitência. […]

Aceitaste uma esposa e não fizeste núpcias públicas, e não vieste à igreja, tu e tua esposa, e não aceitaste a benção do sacerdote, conforme está nos escritos canônicos, e não a dotaste com um dote qualquer que possuíste, seja terra, seja bens móveis, ouro, prata, ou alimentos, ou animais, ou algo similar dentro de tuas possibilidades, ao menos um denário, ou algo do valor de um denário, ou do valor de um óbolo? Se não o fizeste, deves fazer penitência por três quaresmas nos dias estabelecidos. […]

Copulaste com tua esposa ou com outra mulher por trás, a maneira dos cães? Se tu o fizeste, farás penitência por dez dias a pão e água. […]

Copulaste com tua esposa no dia do Senhor? Deves fazer penitência por quatro dias a pão e água. […]

Caíste em falso testemunho, e deste modo testemunhaste e afirmaste que era verdadeiro o que era falso, e o fizeste por amor de alguém, por um prêmio ou por temor? Se tu o fizeste, deves fazer penitência como por adultério e homicídio cometido voluntariamente, pois o Senhor disse: “Com efeito, é do coração que procedem os homicídios, adultérios, roubos [e] falsos testemunhos” 60 . E, portanto, quem pratica o falso testemunho deves fazer penitência e ser excomungado similarmente ao adúltero, ao ladrão e ao homicida. Se tu o fizeste por temor daquele que poderia [te fazer] perder teus membros, tua vida ou teus bens, então dividas a penitência, prevendo que depois não te aconteça posteriormente. […]

Tu consultaste mágicos, levando-os para sua casa para procurar obter uma arte maléfica, ou para punir, ou, seguindo o costume dos pagãos, tu convidaste adivinhos para interrogar sobre o futuro, quase como se fossem os profetas, ou tu convidaste aqueles que lançam a sorte, ou aqueles que esperam prever o futuro ao lançar a sorte, ou aqueles que se valem de augúrios e encantamentos? Se tu o fizeste, farás penitência por dois anos nos dias estabelecidos.

Se tu guardaste as tradições dos pagãos, que, dos dias passados até os nossos dias, os pais transmitem aos filhos, como se por um direito hereditário estabelecido pelo diabo, isto é, tu tens cultuado os elementos, a lua ou o sol, ou o curso das estrelas, a lua nova ou o eclipse da lua, cuja luz tu esperas restaurar através de teus clamores ou com tua ajuda? Tu tens usado esses elementos para tentar trazer ajuda para si ou tu para eles, ou tens consultado a lua nova antes de construir algo ou casar-te? Se tu o fizeste, farás penitência por dois anos nos dias estabelecidos, pois está escrito: “Qualquer coisa que fizerdes em palavras ou obras, fazei em nome de nosso Senhor Jesus Cristo” [Cl. 3,17].

Tu amarraste nós, ou encantamentos, ou ainda outros vários feitiços que homens ímpios, guardadores de porcos, vaqueiros, e alguns caçadores fazem enquanto recitam cantos diabólicos sobre o pão, ervas e certas bandagens ímpias, e ainda escondeste esses [objetos] numa árvore ou atiraste-os em bifurcações ou cruzamentos de caminhos, no objetivo de livrar teus animais ou cães da pestilência, ou destruição, ou para arruinar o gado de alguém? Se tu o fizeste, farás penitência por dois anos nos dias estabelecidos. […]

Bebeste tanto que vomitaste por embriaguez? Se fizeste, farás penitência por quinze dias a pão e água.

Alguma vez inebriaste-te por jactância, assim digo, de maneira que te glorificaste naquilo em que podes vencer os outros — em beber — e assim, por tua vaidade e por tua exortação, conduziste a ti mesmo e a outros à embriaguez? Se fizeste, [farás] trinta dias de penitência a pão e água.

Como no século XI começou a tomar forma o ritual de ouvir as confissões dos fiéis, não é difícil imaginar um confessor sentado com anotações e apontamentos rápidos ao colo, todos tirados do Corrector, enquanto checava a penitência a aplicar.