Bis in idem: a longa história do direito a não ser demandado mais de uma vez pela mesma causa

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Quem leu nosso artigo sobre o princípio do bis in idem já sabe que ele fundamenta as muitas formas pelas quais o Direito proíbe que alguém seja demandado mais de uma vez pela mesma causa, e com certeza teve curiosidade sobre as origens deste princípio jurídico. Afinal, como é possível que uma regra tão simples não tenha previsão legal explícita, mas apareça em tantos lugares no Direito brasileiro?

Existem certas regras que atravessam os séculos e as gerações, passando de boca a ouvido, até o ponto em que nem mesmo os operadores do Direito mais estudados e experientes conseguem dizer com certeza quando foram criadas.

Com a proibição das demandas repetidas se dá o mesmo. Seu fundamento mais antigo está no Direito grego; no Direito hebraico e na Bíblia; no Direito romano; nas Ordenações Filipinas.

A seguir, apresentaremos bem superficialmente esta história.

Algumas questões quanto à História do Direito

Não é intenção deste artigo servir como apresentação metodologicamente adequada da evolução do princípio non bis in idem.

Temos total consciência de que não se faz História do Direito a sério somente citando uma ou outra lei esparsa, sem falar de seu contexto social e institucional, de sua duração, de sua interpretação e aplicação pelos seus contemporâneos, etc.

Este artigo pretende contribuir somente com alguns trechos de obras clássicas de difícil circulação, que poderão ser úteis a quem realmente pretenda fazer um estudo metodologicamente adequado do surgimento e evolução deste princípio jurídico.

Quatro fontes clássicas do bis in idem

Do Direito romano, que chegou ao Direito brasileiro por intermédio do Direito português. Eis algumas das fontes onde se encontra o bis in idem.

O Discurso contra a lei de Leptines, de Demóstenes

Demóstenes (384 AEC - 322 AEC) foi um dos mais importantes estadistas e oradores da Atenas antiga. Seus discursos mais importantes chegaram até nossos dias por escrito, pois o próprio Demóstenes promoveu sua publicação

Ao discursar contra uma proposta de lei apresentada à assembleia de Atenas pelo logógrafo e orador Leptines, Demóstenes diz que, em Atenas,

…οἱ νόμοι δ᾽ οὐκ ἐῶσι δὶς πρὸς τὸν αὐτὸν περὶ τῶν αὐτῶν οὔτε δίκας οὔτ᾽ εὐθύνας οὔτε διαδικασίαν οὔτ᾽ ἄλλο τοιοῦτ᾽ οὐδὲν εἶναι (Προσ Λεπτινην, 147).

Traduzindo de modo aproximado:

…as leis proíbem lançar-se duas vezes contra as mesmas pessoas em torno do mesmo assunto, seja em julgamentos [δίκας], seja em prestações de contas [εὐθύνας,], seja em decisões judiciais [διαδικασίαν], seja em qualquer outro desses caminhos".

O Corpus Iuris Civilis Romanii

Direito Romano é assunto bastante complexo.

Para se ter uma ideia, basta dizer que a Roma antiga existiu entre 753 AEC e 476 EC, ou seja, por 1.229 anos; se levarmos em conta que a parte oriental do império romano continuou a existir por toda a Idade Média europeia, deixando de existir somente em 1453, o “império romano” durou ainda outros 977 anos; no total, são impressionantes 2.206 anos de existência.

Imagine o trabalho que dá estudar todas as leis dos romanos!

Nas atuais faculdades de Direito, um estudo extremamente resumido das leis dos romanos faz parte da matéria “História do Direito”. Em tempos bem mais distantes, era obrigatório que os estudantes de Direito na Europa e nas Américas soubessem latim e estudassem as principais leis dos romanos no texto original, para entender a origem das leis.

Em tempos mais recuados ainda, as leis dos romanos formaram a base das leis de outros povos, que as adotaram ou adaptaram.

O Direito Romano é mais conhecido a partir da sua versão compilada entre 529-534 EC no Corpus Iuris Civilis Romanii é uma coleção de trabalhos fundamentais de jurisprudência, compilado por ordem do imperador bizantino Justiniano I.

Antes do Corpus Iuris Civilis, o estudo e a interpretação do Direito se baseava livros de juristas romanos famosos (Gaio, Ulpiano, ) e em compilações preexistentes, a maioria hoje perdida ou encontrada só em fragmentos:

(“Suma do Direito Civil dos romanos”) é a coleção de todas as principais regras do Direito romano. Nele, há um livro chamado Digesto; é uma compilação de escritos jurídicos feita por ordem do imperador romano Justiniano I. Entre as obras consultadas, estava um livro chamado Libro octavo decimo ad edictum provinciale (“Livro décimo oitavo de editos provinciais”), escrito pelo jurista romano Gaio (130 a.C. - 180 a.C.). Neste livro de Gaio, há uma frase citada no Digesto (livro 50, título 17, parágrafo 57), que diz: bona fides non patitur, ut bis idem exigatur (“a boa fé não permite que se exija duas vezes o mesmo”).

Con la práctica forense medieval, la expresión se redujo a solo non bis idem exigatur, y finalmente a non bis in idem. Está presente en numerosas fuentes del derecho romano. El jurista Ulpiano, Digesto 48, 2, 7, 2, afirma: «No se debe consentir que uno sea acusado de los mismos delitos de que fue declarado libre». Una constitución del año 289 de los emperadores Diocleciano y Maximiano, Código de Justiniano 9, 2, 9, establece: «Quien fue acusado de un crimen público no puede volver a ser acusado del mismo crimen por otro».

. A tradução literal é "

Mishná e Bíblia

O princípio jurídico pelo qual uma pessoa não pode ser demandada mais de uma vez pela mesma causa é discutido muito rapidamente no tratado talmúdico Makkot (“chibatadas”, em hebraico), composto na Babilônia em algum momento entre os anos 450-550 EC.

Este pequeno tratado, integrante da ordem da Seder Nezikin (“Ordem dos Danos”) da Mishná discute as punições administradas pelas cortes hebraicas; a primeira parte aborda o falso testemunho e sua punição, e dá a entender que o problema da dupla demanda já havia sido abordada pelos juízes hebraicos.

Juristas mais familiarizados com a Mishná e o Talmud, entretanto, dizem que o assunto não é discutido em profundidade.

No mundo cristão, entretanto, foi graças a um comentário de Jerônimo de Estridão a um versículo do livro de Naum, um dos profetas menores, que o debate sobre a dupla demanda foi introduzido. Eis o versículo, primeiro na Septuaginta e na Vulgata, depois em várias traduções, com destaque para o trecho comentado:

τί λογίζεσθε ἐπὶ τὸν κύριον συντέλειαν αὐτὸς ποιήσεται οὐκ ἐκδικήσει δὶς ἐπὶ τὸ αὐτὸ ἐν θλίψει / tí logízesthe epí tón kýrion syntéleian aftós poiísetai ouk ekdikísei dís epí tó aftó en thlípsei (Naum 1:9, Septuaginta e transliteração)

quid cogitatis contra Dominum consummationem ipse faciet non consurget duplex tribulatio (Naum 1:9, Vulgata Latina)

Que pensais vós contra o Senhor? Ele mesmo vos consumirá de todo; não se levantará por duas vezes a angústia. (Naum 1:9, ACF)

O que é que vocês estão planejando contra o Senhor? Ele mesmo os consumirá completamente; a angústia não se levantará duas vezes! (Naum 1:9, NAA)

O que é que vocês estão planejando contra o Senhor? Ele os destruirá completamente. Contra Deus ninguém se levanta duas vezes! (Naum 1:9, NTLH)

Por que vocês tramam contra o Senhor? Ele os destruirá com um só golpe; não precisará vir outra vez. (Naum 1:9, NVT)

Que tramais contra o Senhor? Ele vai consumar a ruína; esse desastre não se produzirá duas vezes. (Naum 1:9, VC)

Para Jerônimo de Estridão, o trecho que ele próprio traduziu do hebraico ao latim entre 382-405 EC como non consurget duplex tribulatio (“uma dupla tribulação não surgirá”) autorizava o entendimento de que “Deus não pune duas vezes pela mesma transgressão”.

que o resumiu e substituiu para os habitantes do reino dos visigodos (hoje o sul de Portugal, a maior parte da Espanha e o sudoeste da França), e do próprio Codex Iustinianus que integra o Corpus Iuris Civilis

'Regnum Visigothorum', ou reino dos visigodos (418 d.C - 711 d.C.), por volta do ano 500 d.C.

Tem três partes:

  1. O Codex Iustinianus propriamente dito, organizado

João da Capadócia