Cessão de crédito em cobranças: como se defender
26 May 2023 · Tempo de leitura: 12 minuto(s)No âmbito do Direito do Consumidor, a cessão de crédito é uma prática comum, na qual uma empresa ou instituição financeira transfere a terceiros o direito de receber determinada dívida.
Embora essa prática seja legítima e legal, infelizmente, alguns casos de cobrança abusiva surgem quando ocorre a cessão de crédito.
Neste artigo, abordaremos os abusos comuns e forneceremos orientações valiosas para os consumidores brasileiros sobre como se proteger dessas práticas.
O que é a cessão de crédito?
A cessão de crédito é um negócio jurídico regulamentado pelos pelos artigos 286 a 298 do Código Civil .
Por meio dele, uma pessoa cede a outra algum crédito que tenha contra uma terceira pessoa.
Alguns exemplos:
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Bruno comprou um carro por meio de alienação fiduciária. O orçamento ficou muito apertado depois que ficou desempregado, mas seu carro é fundamental para seus bicos como “marido de aluguel” e faz-tudo: roda a cidade inteira consertando fogões, desentupindo pias, trocando registros, desengripando ventiladores, etc. Há dois meses, deixou de pagar as prestações do carro. O banco com quem contratou o financiamento vendeu a dívida (ou seja, cedeu o crédito) para uma empresa de cobrança, que agora liga todos os dias para Bruno pelo menos cinco vezes.
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João era um servidor público que trabalhava em um órgão municipal de uma pequena prefeitura brasileira. Durante seu tempo de serviço, João sofreu uma série de irregularidades e discriminações por parte de seus superiores, culminando em uma demissão injusta e violações dos seus direitos. Determinado a buscar justiça, João buscou assistência jurídica e entrou com uma ação contra o Estado, alegando danos morais e materiais decorrentes das injustiças sofridas. Após um longo processo, o tribunal reconheceu as irregularidades cometidas pelo Estado e concedeu a João uma indenização por danos morais no valor de R$ 500.000,00. Esse valor foi transformado em um precatório, que deveria ser pago pelo Estado em um prazo determinado. No entanto, diante de dificuldades financeiras e necessidade imediata de recursos para reconstruir sua vida, João optou por vender o precatório para uma empresa de investimento, recebendo antecipadamente uma quantia acordada, enquanto a empresa assumiu o direito de receber o valor total do precatório quando o Estado efetuasse o pagamento. Essa transação permitiu a João superar as dificuldades financeiras e recomeçar sua vida após a injustiça sofrida.
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Joana era uma consumidora que enfrentava dificuldades financeiras devido a faturas de cartão de crédito em atraso. Ela havia acumulado uma dívida considerável com um banco devido a despesas não planejadas e à falta de controle financeiro. Com o objetivo de recuperar parte do valor devido, o banco decidiu explorar a opção de cessão de crédito. O banco entrou em contato com uma empresa especializada em aquisição de dívidas e propôs a transferência dos direitos creditórios das faturas em atraso de Joana em troca de um pagamento imediato. A empresa de cessão de crédito concordou com a proposta e adquiriu a dívida de Joana, tornando-se o novo credor responsável pelo pagamento. Em contrapartida, o banco recebeu uma quantia acordada, recuperando uma parte dos valores emprestados a Joana. Com a cessão de crédito, Joana passou a dever à empresa de cessão de crédito, que assumiu a responsabilidade pela cobrança e recuperação do montante devido. Essa transação permitiu ao banco reduzir o risco de inadimplência e obter um retorno financeiro antecipado, enquanto Joana teve sua dívida transferida para um novo credor.
Nos três casos, houve cessão onerosa de crédito, pois ele foi trocado por dinheiro. Existem, também, cessões gratuitas de crédito:
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Luisa, mulher de meia-idade, está enfrentando dificuldades financeiras devido a uma série de eventos inesperados. Ela perdeu o emprego e teve que lidar com despesas médicas inesperadas devido a um problema de saúde. Com isso, Luisa acumulou dívidas e tinha dificuldades para pagar suas contas mensais. Preocupado com a situação de sua irmã, Benedito decidiu ajudá-la a superar essa fase difícil. Benedito é dono de um pequeno negócio, que tinha uma reserva financeira razoável. Em vez de emprestar dinheiro a Luiza ou fornecer assistência financeira direta, Benedito optou por uma forma de ajuda mais estruturada: cedeu gratuitamente a Luisa alguns investimentos que geravam rendimentos regulares para que ela pudesse receber o dinheiro e utilizá-lo para pagar suas dívidas pendentes. Assim, Benedito formalizou a cessão gratuita de crédito, registrando o acordo em um documento legal para garantir a validade da transação. A cessão de crédito permitiu que os rendimentos gerados pelos investimentos de Benedito passassem a pertencer a Luisa, sem a necessidade de pagamento de juros ou devolução futura. Com a cessão gratuita de crédito, Luisa conseguiu receber uma quantia regular que a ajudou a quitar suas dívidas pendentes e aliviar suas preocupações financeiras imediatas. Essa forma de ajuda foi benéfica para Luisa, pois não gerou a pressão adicional de ter que pagar um empréstimo ou lidar com encargos financeiros.
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Maria, mulher bem-sucedida e engajada em causas sociais, deseja contribuir com uma instituição de caridade que trabalha com crianças carentes. Ela acredita firmemente na importância do trabalho dessa instituição e decide apoiá-la de forma significativa. Maria tem uma carteira de investimentos diversificada, que inclui títulos de renda fixa que geram um fluxo de pagamentos regulares. Em vez de simplesmente fazer uma doação em dinheiro para a instituição de caridade, Maria cedeu gratuitamente os créditos gerados por seus investimentos, registrando a cessão de crédito em favor da instituição. Dessa forma, os pagamentos regulares gerados pelos títulos de renda fixa passam a ser direcionados à instituição de caridade, beneficiando diretamente seu trabalho em prol das crianças carentes. Com a cessão gratuita de crédito, a instituição de caridade recebe um fluxo constante de recursos financeiros, que pode ser utilizado para financiar projetos, suprir necessidades básicas das crianças, promover a educação e o bem-estar geral. Maria, por sua vez, sente-se gratificada em saber que sua contribuição está tendo um impacto direto e duradouro na vida das pessoas atendidas pela instituição.
Neste artigo, vamos nos concentrar nas cessões onerosas de crédito, porque se trata de um ramo de negócios bem estruturado e legalmente regulamentado, mas também com participação de agentes desconhecedores dos direitos dos devedores, capazes de todo tipo de abuso. Nosso foco será, mais precisamente, na cessão de crédito como uma forma de “venda de dívida”.
Por que se vendem dívidas?
A lógica por trás da “venda de dívidas” é muito simples.
Toda cobrança de dívida tem custos operacionais.
Digamos que a cobrança de uma dívida seja feita por carta, e-mail e telefone. Há o custo com envelope, papel e selos. Há o custo com acesso à internet, computadores, infraestrutura de rede. Há o custo com linhas telefônicas disponíveis, aparelhos telefônicos, centrais telefônicas, headsets, etc. E há o custo com a mão-de-obra necessária para colocar tudo isso em movimento, atuando de forma quase exclusiva nesta operação.
Digamos que a cobrança de uma dívida seja levada ao Judiciário. Além dos custos anteriores, há as custas processuais e os honorários de advogado.
Nos dois casos, há o fator tempo.
Com tantos custos envolvidos, o valor das despesas com cobrança tende a acumular-se e crescer, pode até sair mais caro do que a própria dívida se não houver controle de custos.
Trocando em miúdos: a depender da situação, cobrar uma dívida é quase como queimar dinheiro.
Por que, então, dedicar-se a cobranças?
Uma solução seria simplesmente terceirizar a atividade. Entretanto, a própria terceirização tem custo operacional elevado.
É mais fácil, então – usando uma metáfora conhecida – “passar a batata quente” para quem aceite se arriscar a queimar as mãos antes de comê-la.
Um exemplo de cessão de crédito por instituição financeira
Se um banco é credor de uma dívida de R$ 5 mil, é melhor vendê-la por R$ 2 mil e passar o problema para a frente que gastar R$ 2 mil para cobrá-la e não receber nada.
Para isso, a instituição financeira avalia sua carteira de operações de crédito, seleciona aquelas de liquidação mais duvidosa — tratamos dos chamados créditos de liquidação duvidosa num artigo bastante detalhado —, põe na ponta do lápis o quanto custaria cobrá-las até o efetivo recebimento e, se o custo não valer a pena, põe à venda os títulos de crédito referentes a elas, mesmo que por um valor muito menor que o original da dívida.
Não faz sentido para as instituições financeiras, por simples questão de gestão de recursos (financeiros, materiais, humanos, etc.), desviar-se de sua atividade principal para cuidar de recuperação de crédito. É mais interessante vender os créditos de liquidação duvidosa, recuperando ao menos parte de seu valor, que mobilizar recursos para recuperá-los por conta própria.
Além disso, como instituições financeiras precisam mostrar seus resultados para o mercado, vender o máximo possível dos créditos de liquidação duvidosa é forma de melhorar o resultado contábil, pois os créditos de liquidação duvidosa, em linguagem simples, não são contados como direitos a receber, mas como prejuízo.
Cessão de crédito e o negócio da recuperação de crédito
As dívidas à venda são disputadas pelos chamados agentes de recuperação de crédito: empresas de cobrança, escritórios de advocacia, startups e fintechs de recuperação de crédito, etc.
Essas empresas se especializam em recuperar créditos. Exemplos:
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Empresas especializadas em comprar indenizações. Elas abordam, por exemplo, pessoas que sofreram com atrasos em voos, e que preferem receber logo algum valor que compense seu incômodo que aguardar o desfecho de um processo judicial. Estas pessoas são entrevistadas, apresentam documentos, narram a situação, e as empresas constroem assim um perfil do caso, atribuindo-lhe um valor geralmente inferior ao que se costuma receber ao final de um processo com decisão favorável transitada em julgado.
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Empresas especializadas em comprar precatórios. Esses títulos dão direito a exigir do Estado o pagamento de um certo valor, mas devem respeitar uma ordem de preferência que lança para um futuro distante o recebimento. Sabendo disso, empresas se oferecem para comprar os precatórios por uma fração do valor, apostando na impaciência dos credores.
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Empresas especializadas em comprar dívidas. Neste caso, as empresas abordam agentes de finanças e crédito — bancos, consórcios, operadoras de cartões de crédito, etc. — ou empresas com grande volume de clientes — empresas de luz, água e telefone, grandes cadeias varejistas, etc. — para comprar as dívidas de mais duvidosa liquidação, as de mais difícil recuperação, as que envolvem mais alto risco de inadimplência, sempre por valor muito inferior ao valor original da dívida.
Nosso foco serão as empresas especializadas em comprar dívidas.
Para essas empresas, a compra de créditos é um negócio de retorno arriscado, mas rentável. Os créditos de liquidação duvidosa podem compor a totalidade de sua carteira de créditos, ou podem ser parte de uma carteira de créditos mais diversificada. De um modo ou de outro, o valor que conseguem recuperar deve ser sempre maior que o valor que desembolsaram para comprar as dívidas.
Para ilustrar, imagine-se uma empresa de recuperação de crédito que comprou por R$ 5 milhões de um banco um “pacote” de “títulos podres” cujo valor original, somados todos os títulos, é de R$ 10 milhões. Se a empresa conseguir recuperar somente 60% desse valor original (ou seja, R$ 6 milhões), já terá conseguido lucro de R$ 1 milhão.
O negócio, aparentemente, é bom para todas as partes envolvidas — menos para o devedor.
Cobrança abusiva na cessão de crédito
A cessão de crédito é uma forma de negociação que permite às empresas recuperarem seus créditos de forma mais rápida. Entretanto, alguns cessionários acabam agindo de maneira abusiva ao realizar a cobrança, desrespeitando os direitos dos consumidores.
É fundamental que os consumidores estejam cientes de seus direitos e saibam como se defender dessas práticas indevidas.
Exemplos de abusos na cobrança:
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Ameaças e assédio: Algumas empresas que adquirem a cessão de crédito podem recorrer a ameaças, intimidações e assédio ao entrar em contato com os consumidores. Isso inclui ligações excessivas, uso de palavras ofensivas, ameaças de ações judiciais injustificadas ou outras práticas que visem constranger o devedor.
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Cobrança de juros e taxas ilegais: Em muitos casos, os cessionários tentam impor juros e taxas abusivas, que não estão previstas no contrato original ou que ultrapassam os limites legais estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor. Essa prática é considerada abusiva e o consumidor tem o direito de questionar essas cobranças.
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Cobrança indevida de dívidas prescritas: A prescrição é o prazo legal que estabelece até quando uma dívida pode ser cobrada. No entanto, alguns cessionários tentam cobrar dívidas prescritas, ou seja, que já estão fora desse prazo. O consumidor deve estar atento aos prazos de prescrição e não pode ser penalizado por dívidas que não podem mais ser exigidas. Como se defender dos abusos na cobrança baseada em cessão de crédito:
Conheça seus direitos e se defenda!
É fundamental que o consumidor esteja familiarizado com o Código de Defesa do Consumidor, que estabelece os direitos e deveres de ambas as partes na relação de consumo. Informe-se sobre as leis e normas que protegem o consumidor contra práticas abusivas.
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Exija informações claras: Quando entrar em contato com a empresa de cobrança, solicite informações claras sobre a origem da dívida, o valor cobrado, os juros e as taxas aplicadas. Peça que todas as informações sejam fornecidas por escrito.
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Guarde todos os documentos: Mantenha por até cinco anos em pastas bem guardadas cópia de todos os documentos relacionados a empréstimos, contratos, cartões de crédito, boletos de cobrança (com comprovantes de pagamento) e outras dívidas. Inclua aí toda a correspondência enviada e recebida que trate da dívida. Essa documentação será útil caso seja necessário contestar a cobrança abusiva futuramente.
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Denuncie práticas abusivas: Caso seja vítima de cobranças abusivas, registre reclamações nos órgãos de defesa do consumidor, como o Procon, e também no Ministério Público. Essas instituições têm o papel de fiscalizar e punir empresas que desrespeitam os direitos do consumidor.
Conclusão
No Direito do Consumidor, é essencial que os consumidores estejam cientes de seus direitos e saibam como se defender de práticas abusivas na cobrança baseada em cessão de crédito.
Infelizmente, alguns cessionários agem de forma abusiva, ameaçando e cobrando valores indevidos dos consumidores.
No entanto, com conhecimento e informações adequadas, é possível proteger-se dessas práticas e fazer valer seus direitos.
Não hesite em buscar auxílio jurídico especializado caso se depare com cobranças abusivas, pois um advogado capacitado poderá orientar e representar o consumidor na defesa de seus direitos.