Non-Performing Loan e direitos do consumidor
23 May 2023 · Tempo de leitura: 10 minuto(s)Agentes do mercado financeiro costumam usar o chamado inglês de negócios como uma espécie de “gíria técnica”. Com isso, empobrecem a própria língua portuguesa, que tem palavras e expressões com significado exatamente igual, perfeitamente funcionais, para a maior parte das palavras e expressões do inglês de negócios; e criam certo mistério em torno de suas práticas, dificultando sua compreensão adequada por um público leigo em finanças, administração e negócios.
É este o caso do chamado Non-Performing Loan, também conhecido pela sigla NPL. Em outros idiomas, há traduções muito interessantes:
- Alemão: Notleidender Kredit (“Crédito inadimplente”), Problemkredit (“crédito problemático”), toxischer Kredit (“crédito tóxico”), fauler Kredit (“empréstimo ruim”).
- Espanhol: préstamo de dudoso cobro (“empréstimo de cobrança duvidosa”), préstamo moroso (“empréstimo moroso”) e préstamo en mora (“empréstimo em mora”).
- Francês: créance douteuse (“crédito duvidoso”).
A expressão tem tradução perfeita para o português nas expressões crédito inadimplente, crédito duvidoso, crédito não-produtivo ou crédito de liquidação duvidosa, que é como o Banco Central do Brasil trata o assunto. Usaremos a última para tratar do assunto.
Neste artigo, você verá:
- O que é um crédito de liquidação duvidosa, de acordo com normas bancárias internacionais e com o Banco Central do Brasil;
- O que faz um crédito ser considerado de liquidação duvidosa, com especial atenção para as normas da Resolução CMN nº 2/1999;
- Uma análise sobre créditos de liquidação duvidosa e escores de crédito, pois os primeiros têm grande impacto sobre os segundos;
- Como e por que empresas deduzem do Imposto de Renda delas as perdas com créditos de liquidação duvidosa;
O que é o crédito de liquidação duvidosa?
Na prática do mercado financeiro, crédito de liquidação duvidosa é uma modalidade daquilo que em Direito se chama de obrigação em mora, regulamentada pelos art. 394 a 401 do Código Civil.
A diferença está na abordagem da questão.
Para o Direito, importa somente definir o que é mora, estabelecer as consequências da mora, e as responsabilidades por ela. Com isso, operadores do Direito dispõem de meios para fazer com que o devedor cumpra sua obrigação, ou que o credor aceite o pagamento no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.
Para o mercado financeiro, entretanto, o problema é outro. Importa avaliar o risco que uma operação de crédito pode trazer a seus negócios, seja antes de sua contratação, seja durante a vigência do contrato. Com uma avaliação adequada de cada operação de crédito, as instituições financeiras podem avaliar o custo de suas operações, e calcular riscos de forma relativamente precisa.
Um empréstimo “produtivo” proporciona a um banco as receitas de juros de que precisa para ter lucro e disponibilizar novos empréstimos. Quando os clientes não pagam as prestações acordadas, o banco tem de pôr de lado mais capital para o caso de o empréstimo não ser reembolsado, o que reduz a sua capacidade de disponibilizar novos empréstimos.
Para serem bem-sucedidos no longo prazo, os bancos precisam de reduzir ao mínimo os créditos não produtivos, a fim de continuarem a ter lucro com a concessão de novos empréstimos a clientes.
Se um banco tiver demasiados créditos não produtivos no seu balanço, a sua rentabilidade será afetada, porque deixará de ganhar o suficiente com a concessão de crédito. Além disso, precisará de colocar dinheiro de lado como medida de segurança para a eventualidade de ter de anular o montante total do empréstimo em determinada altura.
Existe outra diferença, aliás fundamental: a simples constituição do devedor em mora (ou seja: um atraso no pagamento) não é suficiente para fazer com que um crédito seja considerado de liquidação duvidosa. Afinal, basta o atraso de um dia para que um devedor seja constituído em mora (ou seja: declarado como inadimplente), mas isso não diz nada sobre sua capacidade de pagar a dívida.
Veja-se alguns exemplos:
- Um motorista de Uber com renda de R$ 2 mil por mês atrasa em um dia o pagamento da fatura do cartão de crédito, no valor de R$ 3 mil.
- Um pequeno produtor rural, proprietário de uma fazenda cujo valor total de porteira fechada (terra, equipamentos, sementes, insumos, etc.) é de R$ 1 milhão, atrasa em um dia o pagamento de uma parcela do financiamento agrícola, no valor de R$ 1 mil.
- Uma confecção, empresa com patrimônio líquido de R$ 10 milhões, atrasa em um dia o valor de uma parcela do empréstimo tomado para recomposição do capital de giro, no valor de R$ 3 mil.
É possível considerar do mesmo modo as três situações? Não.
É razoável que uma instituição financeira trate as três situações do mesmo modo? Não.
Por isso, ao longo do tempo foi sendo consolidada entre agentes do mercado financeiro a noção de que alguns tipos de crédito são mais arriscados que os outros, que algumas dívidas são mais difíceis de liquidar, ou seja, de cobrar.
Eis a diferença fundamental entre uma obrigação em mora e um crédito de liquidação duvidosa: este último é uma obrigação específica, ligada a alguma modalidade de crédito, cujo devedor foi constituído em mora, mas cuja reduzida capacidade de pagamento frente ao montante da dívida torna sua cobrança e liquidação mais difícil, aumentando as dúvidas de que algum dia essa dívida venha a ser paga.
O que faz um crédito ser considerado de liquidação duvidosa?
Nos três exemplos acima, diferentes situações levam a diferentes expectativas quanto à liquidação do crédito. É certo que cada instituição financeira pode criar critérios próprios para avaliar o risco de suas operações de crédito; mas a proliferação de critérios não é boa, porque não consegue gerar expectativas razoáveis quanto à classificação de uma operação de crédito num ou noutro critério, numa ou noutra classificação, gerando instabilidade e insegurança jurídica.
Por isso, os critérios para a classificação do risco envolvido nos créditos de liquidação duvidosa são definidos em acordos e normas internacionais — p. ex., os Acordos de Basiléia , o Guia de Compilação de Indicadores de Saúde Financeira do Fundo Monetário Internacional , etc. – e na legislação de cada país.
Estas normas criam uma espécie de “padrão internacional”, que estabelece um critério simples: é não-produtivo, ou de liquidação duvidosa, um crédito que tem parcelas com atraso igual ou superior a 90 (noventa) dias.
Mas este não é o único critério.
A classificação da Resolução CMN nº 2/1999
No Brasil, cada instituição financeira é obrigada a classificar suas operações de crédito (cheque especial, empréstimos pessoais, etc.) de acordo com os critérios da Resolução CMN n° 2.682, de 21/12/1999 , do Conselho Monetário Nacional do Banco Central. A mesma resolução flexibiliza as regras de classificação das operações de crédito de clientes cuja responsabilidade total seja inferior a R$ 50 mil, permitindo às instituições financeiras usar tanto modelos internos de avaliação, quanto uma regra de classificação por atraso estabelecida na própria resolução:
- atraso entre 15 e 30 dias: risco nível B, no mínimo;
- atraso entre 31 e 60 dias: risco nível C, no mínimo;
- atraso entre 61 e 90 dias: risco nível D, no mínimo;
- atraso entre 91 e 120 dias: risco nível E, no mínimo;
- atraso entre 121 e 150 dias: risco nível F, no mínimo;
- atraso entre 151 e 180 dias: risco nível G, no mínimo;
- atraso superior a 180 dias: risco nível H.
A Resolução CMN n° 2.682 de 21/12/1999 estabelece ainda outros critérios de classificação de risco para o mesmo perfil de cliente:
- Quanto aos devedores e seus garantidores: situação econômico-financeira; grau de endividamento; capacidade de geração de resultados; fluxo de caixa; administração e qualidade de controles; pontualidade e atrasos nos pagamentos; contingências; setor de atividade econômica; limite de crédito.
- Quanto às operações de crédito realizadas pelos devedores: natureza e finalidade da transação; características das garantias, particularmente quanto à suficiência e liquidez; valor.
Empresas estão desprotegidas contra os créditos de liquidação duvidosa?
Os créditos de liquidação duvidosa são um risco para qualquer empresa. Podem, inclusive, levá-las à falência.
Por isso, já é comum empresas criarem um indicador contábil conhecido como provisão para créditos de liquidação duvidosa (PCLD), provisão para devedores duvidosos (PDD) ou perdas estimadas em créditos de liquidação duvidosa (PECLD).
É uma reserva de capital “de emergência” que empresas fazem para lidar com casos de inadimplência, criada com base em uma estimativa do dinheiro que deve ser reservado para essa função com base na sua taxa de inadimplência.
A PCLD é operação técnica de contabilidade contábil, permitida pela legislação contábil (p. ex., entre outras, pela Lei 4.506/1964 , pela Lei 8.541/1992 , pela Lei 9.430/1996 , pela Lei 12.838/2013 , e pela Lei 14.257/2021 , pelo item 2.7.1 da Resolução 774 do Conselho Federal da Contabilidade , etc.).
Aquilo que em outros setores é opcional, no caso das instituições do Sistema Financeiro Nacional (bancos, operadoras de cartões de crédito, etc.) é questão obrigatória: a Resolução CMN 2.682/1999 impõe a elas a criação e provisionamento de um fundo para fazer face aos créditos de liquidação duvidosa, depositando:
- 0,5% (meio por cento) sobre o valor das operações classificadas como de risco nível A;
- 1% (um por cento) sobre o valor das operações classificadas como de risco nível B;
- 3% (três por cento) sobre o valor das operações classificadas como de risco nível C;
- 10% (dez por cento) sobre o valor das operações classificados como de risco nível D;
- 30% (trinta por cento) sobre o valor das operações classificados como de risco nível E;
- 50% (cinqüenta por cento) sobre o valor das operações classificados como de risco nível F;
- 70% (setenta por cento) sobre o valor das operações classificados como de risco nível G;
- 100% (cem por cento) sobre o valor das operações classificadas como de risco nível H.
No caso de pessoas jurídicas, pelo que diz o artigo 9º da Lei 9.430/1996 , cada operação de crédito de liquidação duvidosa pode ser deduzida do Imposto de Renda como despesa (no cálculo do lucro real) sempre que aconteça alguma das seguintes situações:
- O devedor (pessoa física ou jurídica) foi declarado falido, ou o Judiciário decretou sua insolvência.
- O devedor é pessoa jurídica em concordata ou recuperação judicial.
- Não há garantia da dívida (penhor, hipoteca, fiança, arrendamento, etc.), e a dívida:
- é de até R$ 5 mil, e está vencida há mais de seis meses;
- está entre R$ 5 mil e R$ 30 mil, está vencida há mais de um ano e vem sendo cobrada “amigavelmente”;
- é maior que R$ 30 mil, e está sendo cobrada judicialmente.
- Existe garantia da dívida de qualquer valor (penhor, hipoteca, fiança, arrendamento, etc.), mas ela está vencida há pelo menos dois anos e existe cobrança judicial em andamento.
Deste modo, o valor de cada dívida contraída por um consumidor pode ser usado por empresas para reduzir o pagamento de imposto de renda da empresa à qual deve, enquanto a dívida não for totalmente paga.
Uma das consequências da adoção da PCLD na contabilidade de uma empresa é a possibilidade de encarecer o produto final. Afinal, em última análise, de onde, senão dos preços dos bens e serviços cobrados dos consumidores, seria tirado o dinheiro para provisionar este fundo?
Créditos de liquidação duvidosa e cessão de crédito
Além da possibilidade de abater de seu patrimônio os créditos de liquidação duvidosa,
Riscos para o devedor nas cessões de créditos de liquidação duvidosa
Existem formas especialmente danosas de recuperação de créditos de liquidação duvidosa. Além disso, há consequências de enorme impacto para a vida dos consumidores.
Coação durante a cobrança
Cessão de títulos prescritos
Nesta modalidade de cessão de crédito, o agente de crédito compra títulos atingidos pela prescrição .
Como já escrevemos um longo artigo sobre prescrição e decadência , remetemos para lá quem se interesse pelo assunto. Para resumir com foco no que interessa, dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular prescrevem em cinco anos .
Com a prescrição, credores (incluindo bancos, operadoras de cartões de crédito e outras instituições financeiras) perdem o direito de cobrar as dívidas judicialmente. Apesar disso, nada os impede de cobrá-las extrajudicialmente.
A recuperação extrajudicial de crédito, deste modo, é operação de alto custo e risco. Agentes de recuperação de crédito
Uma forma particularmente danosa de cessão de créditos de liquidação duvidosa envolve títulos de crédito afetados pela prescrição.