Um método para encontrar nomes de ruas antigos de Salvador
18 Nov 2021 · Tempo de leitura: 18 minuto(s)Desenvolvo duas carreiras em paralelo, de acordo com meus dois grandes interesses: tecnologia e cidades. Na área de tecnologia, trabalho com segurança digital e cuidados digitais há bastante tempo, e mais recentemente com a adequação de organizações à LGPD. Na área de urbanismo, minha atuação me levou a desenvolver pesquisas que resultaram num mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA, no qual busquei entender como os conflitos sociais impulsionaram a produção, apropriação e uso do espaço urbano naquele enorme pedaço de Salvador que é o antigo distrito/freguesia de Brotas (clique aqui para baixar o arquivo da dissertação).
Ao pesquisar para o mestrado, precisei recorrer a vários documentos de posse e propriedade para entender a evolução fundiária de Brotas.
Acontece que, como em qualquer documento fundiário urbano antigo, os pontos notáveis são nomeados de acordo com os usos e costumes de cada época — que não são mais os nossos. Os nomes de ruas são mudados, monumentos são deslocados ou destruídos, imóveis mudam de donos… Com o passar dos anos, com as mudanças nos nomes e traçados de ruas, com o deslocamento ou destruição de certos monumentos (chafarizes, estátuas, obeliscos, etc.), com a sucessão de donos e posseiros, enfim, com a ação das classes sociais sobre o espaço, altera-se a toponímia, transformam-se os pontos notáveis. Deste modo, aqueles marcos delimitadores que permitiam situar adequadamente um imóvel e seus limites quando da produção do documento fundiário podem, hoje, ser de pouca utilidade sem uma espécie de “tradução”.
Em documentos fundiários relativos a imóveis mais afastados da mancha urbana consolidada, a situação é ainda mais difícil. Os pontos notáveis tipicamente urbanos como ruas, esquinas e cruzamentos, prédios governamentais, praças, monumentos e outros, eram poucos, ou mesmo inexistentes. Fora da área urbana, havia as estradas e templos, mas eram poucos, muito afastados entre si. Um exemplo, na área e período que estudei: entre a igreja de Nossa Senhora de Brotas e a igreja de Nossa Senhora da Luz (Pituba), construídas entre 1610 e 1772, havia (e ainda há) cerca de 4,7km. Outro exemplo: a antiga “estrada do Matatu”, atual rua Luiz Anselmo, tinha a maior concentração de registros fundiários da freguesia na documentação eclesial de 1858-1862, mas, hoje como na época, tem cerca de 2km de extensão; como individuar os imóveis, se os limites são apresentados na documentação como sendo a terra de um outro vizinho, a essa altura já há muito falecido?
Para superar essas dificuldades, desenvolvi um método para identificar esses topônimos e pontos notáveis de Salvador cujos nomes foram substituídos, ou que deixaram de existir.
Levantamento de nomes e construção de base de dados toponímicos
Em primeiro lugar, anoto todos os topônimos que desejo pesquisar. Registro, também, todas as variantes possíveis da grafia do topônimo encontradas em fontes de época. Exemplos:
- “valla”, “vala”
- “Cabula”, “Cabulla”
- “Camarajipe”, “Camaragipe”, “Camorojipe”, “Camorogipe”, “Camurugipe”, “Camurujipe”
Se necessário, pego o topônimo e vario a grafia pelas regras dos acordos ortográficos de 1911, 1943, 1945, 1971 e 1990.
Com isso, construo uma espécie de “base de dados” que me será útil durante a pesquisa. Organizo essa base de dados numa tabela, contendo as seguintes colunas:
- Topônimo antigo
- Variantes do topônimo
- Acordo ortográfico de 1911
- Acordo ortográfico de 1943
- Acordo ortográfico de 1945
- Acordo ortográfico de 1971
- Acordo ortográfico de 1990
- Nome atual do lugar
- Circunstâncias (pontos notáveis vizinhos (antigos e atuais), imóveis próximos, etc.)
- Georreferenciamento (quando possível e/ou viável)
Essa tabela me ajuda a situar os pontos notáveis pesquisados. Em alguns casos, especialmente quando a pesquisa envolve muitos topônimos numa área bastante grande, basta o preenchimento da tabela com todos os pontos notáveis desejados para começar a perceber as mudanças e permanências nos topônimos, e assim começar a “traduzir” os topônimos antigos para os atuais nomes dos lugares.
Pesquisa em catálogos toponímicos soteropolitanos
Construída essa base, recorro a coletâneas de topônimos soteropolitanos. Existem algumas já digitalizadas:
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SAMPAIO, Lauro. Indicador e guia pratico da cidade do Salvador-Bahia. Salvador: Typographia Agostinho Barboza & Cª, 1928. (clique aqui para baixar) – O original se encontra na seção de obras raras da Biblioteca dos Barris. Alguém nos fez o favor de digitalizar o livro, com boa qualidade.
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SOUZA, Raymundo Camillo de. Guia da Cidade do Salvador (Estado da Bahia): dados indicativos de todas as Ruas, Avenidas, Praças, Largos, Travessas, Becos, etc., etc., trazendo a “Velha e Nova Nomenclatura” e na rigorosa ordem alfabética. Salvador: A Graphica, 1935. (clique aqui para baixar) – O original também se encontra na seção de obras raras da Biblioteca dos Barris. Novamente, alguém nos fez o favor de digitalizar o livro, com boa qualidade.
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PREFEITURA MUNICIPAL DO SALVADOR. Atlas parcial da cidade do Salvador. Salvador: PMS, 1955. (clique aqui para baixar) – O original se encontra na Biblioteca Cláudio Perani, do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), na Estrada de São Lázaro (Federação). A obra aparentemente ainda não consta no catálogo da biblioteca, mas como eu mesmo o digitalizei, ainda que precariamente, certifico que existe um exemplar disponível por lá.
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MORAES, Mello. Praças, ruas e ladeiras da Cidade do Salvador. Salvador: Comissão de Nomenclatura Tradicional das Ruas da Cidade do Salvador, 1959. (clique aqui para baixar) – O original se encontra na biblioteca da Fundação Gregório de Matos. Eu mesmo o digitalizei, bem precariamente. O exemplar na biblioteca, ao menos até o fechamento deste artigo (18/11/2021), não aparecia no (catálogo da biblioteca do Arquivo Histórico Municipal de Salvador), mas como eu mesmo o digitalizei, certifico que existe um exemplar disponível por lá.
Com muitas ressalvas, recorro também ao estudo Caminho das águas em Salvador (clique aqui para baixar), que apesar de certos lapsos e omissões graves serviu como principal subsídio para a atual delimitação de bairros de Salvador pela Lei Municipal 9.278/2017 (clique aqui para baixar). Esta lei substituiu as antigas divisões territoriais de Salvador determinadas pela Lei Municipal 504, de 12 de agosto de 1954 (clique aqui para abrir} e pela Lei Municipal 1.038, de 15 de junho de 1960 (clique aqui para abrir), que apesar de revogadas são de interesse para quem pesquisa topônimos antigos da cidade.
Deve-se destacar que entre 1930 e 1935, em momento que ainda não consegui datar precisamente, houve a renomeação de todas as ruas, praças e ladeiras de Salvador, apagando topônimos antigos. Sei-o porque minha pesquisa de mestrado avançou até 1930, e lá ainda apareciam todos os topônimos antigos e nenhum topônimo “novo”; e já no “Guia” de Raymundo Camillo de Souza, que é de 1935, estão registrados os nomes novos, remetendo aos nomes antigos.
Pesquisa na Hemeroteca Digital Brasileira
Na maior parte dos casos, os procedimentos anteriores são suficientes, ainda mais quando já se tem uma noção aproximada daquilo que se quer localizar.
Pode acontecer, entretanto, de o toponímico em questão ainda não ter aparecido.
Há um recurso “deseperado”: usar a mesma “base de dados” para fazer uma varredura na Hemeroteca Digital Brasileira (clique aqui para acessar).
A Hemeroteca Digital Brasileira é uma coleção de periódicos raros custodiada e digitalizada Biblioteca Nacional, cujo conteúdo se pode buscar por palavra-chave, data, local de publicação e outras categorias.
A pesquisa na Hemeroteca Digital Brasileira tem a vantagem de apresentar o nome do lugar junto com algumas circunstâncias. É comum encontrar comunicados de venda em leilão, sucessões, notícias sobre crimes ocorridos no lugar, disputas fundiárias, entre outros fatos relevantes que podem ter envolvido o lugar cujo nome se procura.
Pesquisa em mapas antigos e modernos
Se a pesquisa estiver sendo realizada somente para “traduzir” um topônimo antigo para seu nome atual, as etapas anteriores costumam ser suficientes. Entretanto, se o que se deseja é a localização precisa de um imóvel a partir dos topônimos antigos, uma etapa extra é necessária: a pesquisa cartográfica — ou seja, a pesquisa em mapas.
As etapas anteriores da pesquisa podem ter indicado todos os elementos necessários para “traduzir” um topônimo antigo. Quando isso acontece, esta etapa é simples: basta pesquisar pelo nome atual em mapas digitais como o Open Street Map (clique aqui para abrir) e tentar situar o lugar.
Se o nome do lugar não aparece em mapas recentes de Salvador, a solução é recorrer a mapas antigos da cidade, como os seguintes:
- Mapa de Salvador, por Henrique de Beaurepaire-Rohan (1839) (clique aqui para abrir): o mapa é bastante “genérico”, porque produzido apenas para ilustrar movimentações militares durante a Sabinada (1837). Não obstante, dá nomes a certas estradas e cursos d’água que não se encontram em outros mapas da cidade e persistiram por todo o século XIX e início do século XX.
- Mapa de Salvador, por Carlos Weyll (1851) (clique aqui para abrir): é o mais completo mapa do século XIX no que diz respeito às áreas “suburbanas” e “rurais” de Salvador, e também a pontos notáveis como igrejas, praças, ladeiras, trapiches, praias, rios, hospitais, prédios públicos, e certas fazendas e armações pesqueiras. Existem algumas imprecisões e omissões, e além disso a maioria das ruas não é nomeada, mas, frente a outros mapas do século XIX e considerando as técnicas cartográficas da época, é de longe o mais abrangente.
- Planta da área urbana de Salvador, por Adolfo Morales de los Rios (1894) (clique aqui para abrir): servindo a um projeto de saneamento que Adolfo Morales de los Rios pretendeu implementar em Salvador, abrange apenas a área de Salvador hoje conhecida como “histórica”, ou seja, a mancha urbana consolidada no final do século XIX. Contém alguns erros de localização (p. ex. o “Theatro São João” ocupa o espaço que deveria ser do “Largo Castro Alves”). Apesar de tudo, nomeia adequadamente as ruas da cidade, servindo como boa referência para situar topônimos urbanos antigos de Salvador.
- Mapa “Cidade do Salvador — sistema viário”, pela Seção da Planta Cadastral da Secretaria de Finanças da Prefeitura de Salvador (1969): este mapa, infelizmente sem versão digital, tem cópias no Arquivo Histórico Municipal de Salvador (onde o consultei pela primeira vez), na biblioteca Francisco Vicente Vianna do Arquivo Público da Bahia (clique aqui para ler a listagem de mapas da biblioteca) e na biblioteca da Fundação Mário Leal Ferreira (clique aqui para consultar o acervo). Realizado com base em mapeamento aerofotogramétrico executado pela Cruzeiro do Sul em 1957, atualizado por fotografias aéreas do recobrimento feito para a CAENE em 1965/1966 e por serviços complementares de campo e batimetria conforme cartas náuticas da Marinha do Brasil, é talvez o último entre os mapas que habitualmente consulto onde se podem ver topônimos há muito esquecidos, e outros que surgem em documentos antigos, mas não aparecem em nenhum outro mapa. Fotografei-o, infelizmente em péssima resolução, e reproduzi a foto na página 570 de minha dissertação de mestrado.
- Mapa de Salvador, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (1970) (clique aqui para abrir): tendo como base levantamento cartográfico feito pela Petrobrás, as três principais qualidades deste mapa são, em primeiro lugar, estender-se desde Salvador até um pouco depois da Praia do Forte; em segundo lugar, apresentar nomes de fazendas que estão na origem de localidades hoje bem conhecidas depois da expansão urbana soteropolitana dos anos 1970; em terceiro lugar, traçar linhas indicativas de antigos caminhos e estradas que, ratificadas pelo mapa da Prefeitura de Salvador (1969), ajudam a situar topônimos que se considerava perdidos.
Os dois últimos mapas evidenciam que, a julgar pela persistência às vezes secular de nomes de fazendas, morros, riachos, espelhos d’água e outros pontos notáveis, topônimos antigos deixam “rastros” relativamente fáceis de localizar, se quem pesquisa tiver acesso a fontes adequadas e prestar atenção a detalhes.
Alguns exemplos práticos de aplicação do método
Loteamento “chácara do Padre Eloy” (Acupe de Brotas, Salvador, 1927)
Consultando documentação existente no Arquivo Histórico Municipal de Salvador, descobriu-se o loteamento de uma certa “chácara do Padre Eloy”, iniciado em 1927.
A documentação afirma que o loteamento foi feito no “Acupe de Brotas”, localidade fácil de descobrir em qualquer mapa atual de Salvador.
O Open Street Map mostra uma “rua Padre Eloi”, e o Google Maps mostra uma “ladeira Padre Eloi”; com isso, tendo em vista que a documentação do loteamento inclui uma planta com uma ladeira, foi possível situar o loteamento sem maiores problemas.
Acontece que o Google Maps mostra, rente à “ladeira Padre Eloi”, a existência de uma “rua Joaquim dos Couros”, já indicada no “Guia de Salvador” de Raymundo Camillo de Souza como existente no Acupe de Brotas em 1935.
Com isso, surgem duas hipóteses: ou a ladeira representada no loteamento é a própria Joaquim dos Couros, que depois teria sido ladeada por outra ladeira construída por força do loteamento, ou o loteamento desconsiderou a existência da Joaquim dos Couros e indicou a construção de uma ladeira nova, que veio a se chamar “Padre Eloi” por força do nome da antiga chácara.
Num caso e no outro, situado o loteamento, fica muito mais fácil lidar com qualquer documentação daquela área.
“Estrada da Cruz das Almas” e “estrada de Brotas ao Rio Vermelho” (Brotas, Salvador, séc. XIX)
Inúmeros documentos fundiários e projetos de obras existentes tanto no Arquivo Histórico Municipal de Salvador quanto no Arquivo Público da Bahia situam imóveis na “estrada da Cruz das Almas”, ou na “estrada de Brotas ao Rio Vermelho”, ambas na freguesia de Brotas.
Busca no Open Street Maps e no Google Maps com esses nomes não deu resultado algum. Os topônimos, portanto, desapareceram.
Retornando à documentação fundiária de 1858-1862, localizei um documento mostrando que a “estrada da Cruz das Almas” fazia esquina com a “estrada de Brotas” (atual avenida D. João VI). De igual modo, alguns pedidos de licença para obras indicavam a existência da mesma esquina. Com isso, eliminou-se a hipótese de que os dois topônimos fossem outras denominações para a “estrada de Brotas”.
O próximo passo foi a pesquisa em mapas antigos em busca de todos os caminhos que saíam da “estrada de Brotas” rumo ao Rio Vermelho. Seria preciso levar em conta que o Rio Vermelho, no século XIX, era uma espécie de “estância de veraneio” circunscrita à área entre as atuais quadras de futebol da orla, próximas ao largo de Santana, até a atual praça Colombo e a ponte sobre o Camarajipe; a área além da ponte, do atual largo da Mariquita em diante, era conhecida assim mesmo, como “Mariquita”, e era menos frequentada que o “pedaço” anterior.
Olhando o mapa de Carlos Weyll (1851), nota-se que três vias exteriores “desembocam” no Rio Vermelho, das quais somente uma liga a localidade a Brotas. É essa a “estrada de Brotas ao Rio Vermelho”, portanto. Mas seria ela a “estrada da Cruz das Almas”?
Retornando à documentação, observou-se que a “Cruz das Almas” aparece como uma “localidade”, enquanto a “estrada de Brotas para o Rio Vermelho” também apareceu referida como “estrada da Cruz das Almas”. Os dois topônimos, portanto, referem-se ao mesmo caminho. Mas que caminho seria esse? Por onde passava?
Sabe-se que há certas vias, estradas e ruas que duram séculos. Seus nomes podem ser mudados, mas o trajeto permanece o mesmo, ou quase o mesmo. Tendo isso em mente, o traçado da “estrada da Cruz das Almas”/“estrada de Brotas ao Rio Vermelho” foi comparado com possíveis caminhos semelhantes no Open Street Map e no Google Maps. O resultado: a “estrada da Cruz das Almas”/“estrada de Brotas ao Rio Vermelho” corresponde com razoável precisão ao traçado da atual avenida Waldemar Falcão, no Horto Florestal, em Brotas.
Situada, enfim, a estrada, pude, então, situar vários imóveis a ela adjacentes.
Conclusões
O método descrito mostrou-se eficaz para situar pontos notáveis e topônimos antigos de Salvador. Com ele, foi possível situar e “traduzir” para os nomes atuais todas as ruas existentes em Brotas entre 1889 e 1930 (período abrangido pela minha pesquisa de mestrado), e foi possível também situar, ainda que aproximativamente, fazendas, roças e sítios espalhados por toda a freguesia de Brotas no século XIX. Os exemplos acima foram retirados diretamente da dissertação resultante da pesquisa, que pode ser conferida em busca de outros resultados.
Pontos negativos
Falta de testes adequados fora das circunstâncias originais da pesquisa
Apesar do sucesso nos casos apresentados, o método descrito funcionou bem por causa de características muito próprias da pesquisa para a qual foi criado.
Só foi possível localizar e situar adequadamente imóveis descritos na documentação fundiária pesquisada depois de alguns meses construindo uma base de dados robusta com topônimos antigos.
A proximidade de certos imóveis cuja documentação fundiária foi pesquisada permitiu entender os limites de cada um, pois todos os vizinhos de cada imóvel tiveram sua documentação fundiária analisada. Deste modo, as “terras de Fulana de Tal” deixavam de ser um marco vago e assumiam grande concretude, permitindo inclusive “enfileirar” numa mesma rua ou estrada os imóveis descritos na documentação fundiária pesquisada.
A reconstituição do mosaico fundiário de determinadas ruas, facilitada pelo fato de a base de dados ser formada por grande número de documentos, foi grandemente facilitada pela presença de imóveis situados em esquina, que permitiram, por isso, entender onde “começava” e onde “terminava” uma fieira de terrenos, lotes, casas ou roças alinhadas na mesma estrada.
Como foram encontradas algumas plantas de situação em meio à documentação consultada, as informações ali constantes permitiram situar certos pontos notáveis como espelhos d’água, riachos, córregos, vias vicinais, servidões de passagem (que depois foram transformadas em ruas), morros, vales, encostas, grandes árvores, rochas e prédios de referência.
Tais informações ajudaram bastante a estruturar a base de dados, gerando um círculo virtuoso: quanto mais informações eram encontradas nas plantas de situação, mais enriquecida e explicada ficava a base de dados; e quanto mais completa ficava a base de dados, mais fácil ficava seguir identificando as plantas de situação e documentos fundiários seguintes.
Fora dessas circunstâncias muito próprias à pesquisa original, entretanto, foram poucas as oportunidades em que este método foi aplicado integralmente.
Em 19 de outubro de 2021, a pedido da professora Urpi Montoya Uriarte (FFCH/UFBA, departamento de Antropologia), debati a permanência de certos topônimos de Salvador e o uso dos mapas antigos, principalmente o mapa de Carlos Weyll, com estudantes de graduação e pós-graduação.
Entre 17 e 18 de novembro de 2021, a pedido da pesquisadora Lisa Earl Castillo, apliquei o método para localizar pontos notáveis, situar toponímicos e delimitar imóveis em áreas fronteiriças à freguesia/distrito de Brotas. Se consegui, foi justamente por ter “trombado” com alguns desses toponímicos e imóveis em minha própria pesquisa; não fosse isso, não tenho certeza se conseguiria.
O método, portanto, ainda precisa ser testado mais vezes fora de seu contexto original.
Distritos suburbanos
No território de Salvador, existem muitos estudos sobre as antigas freguesias/distritos que formavam a área urbana propriamente dita (Sé, São Pedro, Passo, Conceição da Praia, Pilar, Mares, Nazaré); fora desse núcleo, entretanto, os estudos são pontuais e escassos.
Existem alguns estudos sobre a área “meio urbana, meio rural” circundante (Vitória, Santo Antônio, Brotas), em especial minha própria pesquisa de mestrado sobre Brotas e a pesquisa de Maria do Carmo (Carmita) Baltar Esnaty de Almeida sobre a Vitória. Mesmo esses, entretanto, são parcelares e fragmentários frente à riqueza da história territorial dessas freguesias/distritos: concentraram-se em aspectos arquitetônicos e urbanísticos principalmente, quando ainda há muito a estudar. O aspecto arquitetônico e urbanístico do desenvolvimento desses lugares é um primeiro e importante passo, mas ainda há muito por fazer.
O pior é que não há, até o momento, nenhum estudo, abrangente ou monográfico, que trate pormenorizadamente das antigas freguesias/distritos suburburbanos de Salvador (Itapuã, Pirajá, Paripe, Passé, Matoim, Maré, Cotegipe). Há “sobrevoos”, como o de Pedro de Almeida Vasconcellos em Salvador: transformações e permanências, e só. Pouco se avançou sobre fontes documentais como livros de cartório com transações de compra e venda de imóveis, livros paroquiais de registro de terras ou autos de infração dos órgãos de vigilância sanitária, que permitiram construir uma base de dados mais ampla e reconstruir, ao menos documentalmente, o mosaico fundiário de cada época.
Talvez histórias do município de Candeias contem a história das freguesias/distritos de Passé e Matoim, e o mesmo ocorra quanto à antiga freguesia/distrito de Cotegipe, de onde a localidade de Água Comprida emancipou-se com o nome de Simões Filho. Mas e Itapuã? Pirajá? Paripe? Maré? E as vastas áreas rurais de Santo Antônio, Vitória e Brotas?
Toda essa história territorial e fundiária ainda está por ser sistematizada. O método descrito poderá, eventualmente, mostrar-se ferramenta útil a quem assuma essa tarefa, mas as dificuldades encontradas para aplicá-lo às áreas mais ermas e rurais de Brotas mostra que, sob tais condições, pode encontrar limitações severas.
Pontos positivos
O método descrito sumariamente neste artigo é muito útil para quem pretenda aplicar os resultados de uma pesquisa fundiária de longo prazo em atividades de planejamento urbano, regularização fundiária e outras ligadas ao Direito Urbanístico e Direito Imobiliário que demandem algum conhecimento de história territorial de Salvador.
Elucidação de cadeias sucessórias
É verdade que os cartórios de imóveis estão aptos a indicar, com poucas margens para dúvidas, a cadeia sucessória de um imóvel. Há situações, entretanto, em que é possível rastrear a cadeia de proprietários, mas o registro cartorário não ajuda a situar o imóvel, ou mesmo seus limites. Em tais situações, este método poderá ser bastante útil.
Educação territorial
Conhecida a história de um lugar praticamente na escala da rua, torna-se possível contá-la.
Assim como há muitos livros de história do Rio Vermelho, por exemplo, por que, até o momento, pouco se fez nesse sentido quanto a lugares como Engenho Velho de Brotas, Matatu, Acupe e Cosme de Farias? Seriam esses lugares, por acaso, lugares sem história? Ou melhor seria dizer que faltou quem entendesse esses lugares como dignos de pesquisa e reflexão histórica?
Reconstruída a história de um lugar na escala de cada rua, passa a fazer sentido aquela máxima de “ligar os problemas locais e imediatos a problemas mais amplos”. Dois exemplos ajudam a entender melhor a situação.
A história da guerra da Independência na Bahia, por exemplo, torna-se muito mais próxima para crianças e jovens de escolas de Brotas quando, em vez de somente imaginarem uma representação própria no caboclo e na cabocla ou decorarem os nomes de figuras histórias como Maria Quitéria ou o general Labatut, descobre que tropas comandadas por Felisberto Gomes Caldeira fizeram uma “guerra de guerrilhas” contra as tropas portuguesas a partir da ladeira dos Galés, da rua da Boa Vista e das matas e fazendas que existiam em volta da atual avenida d. João VI. A imaginação corre mais rápido quando parte de substratos palpáveis.