Meu vizinho tem um cachorro que late o tempo todo, o que posso fazer?
26 Jun 2021 · Tempo de leitura: 14 minuto(s)Quem nunca passou por algo assim que atire a primeira pedra: você está indo dormir para acordar cedo no outro dia por causa de um compromisso, e o cachorro do vizinho não para de latir. Sem conseguir dormir direito, seu dia seguinte vira um inferno. E à noite, quando você acha que vai conseguir descansar para compensar o sono perdido, lá vem o cachorro latir de novo…
Casos como este podem ter solução sem recorrer ao Judiciário – mas se for necessário é preciso estar pronto. Tentarei explicar a seguir como resolver casos semelhantes.
1. O cachorro não tem culpa
Antes que você lembre de quanta raiva sentiu, tenha em mente que o cachorro não late de propósito, porque não existe cachorro “do mal”. Cães latem por muitas razões – mas nunca pelo prazer sádico de te incomodar.
Cachorros que dormem fora de casa podem latir por tédio, por exemplo. Pastores alemães, terriers, pit bulls, dobermanns, rottweilers e outros cães de guarda são “mestres” nisso. A solução nestes casos é mais exercício: eles precisam ser levados para andar, para gastar energia, e enfim descansar. São como crianças: se bricam o dia inteiro, gastando energia, dormem bem e dormem na hora certa; mas se passam o dia parados na frente de uma tela o resultado é estarem cheios de energia à noite, sem querer dormir.
Cachorros também são muito sensíveis ao ambiente. Calor ou frio os afetam; a não ser que se trate de um husky, mesmo um cachorro mais peludo passará a noite ganindo se o frio for intenso. Ruídos e movimento também podem chamar a atenção de um animal, ou mesmo levá-lo ao estresse: há cães “animadinhos” e nervosos, que latem para tudo que se move. Nestes casos, um treinamento de obediência pode ser a solução.
Não se pode descartar também os maus tratos. Cachorros que ficam confinados em espaços apertados, com pouca ventilação ou luz; cachorros doentes que não recebem o tratamento adequado; cachorros que são espancados, presos com correntes que os machucam; tudo isso são maus tratos, crime ambiental tipificado no art. 32 da Lei 9.605/1998. .
Como saber se o animal está sendo vítima de maus tratos? Eis alguns indícios:
-
Ferimentos visíveis e não tratados: Se o cachorro exibir ferimentos visíveis, como cortes, contusões, queimaduras ou outras lesões, e não parecer estar recebendo tratamento veterinário adequado.
-
Magreza extrema ou desnutrição aparente: Um cachorro subnutrido pode ter costelas, espinha dorsal e ossos pélvicos visíveis, indicando falta de alimentação adequada.
-
Pelagem descuidada e suja: Uma pelagem malcuidada, suja ou emaranhada pode indicar falta de higiene e cuidado, o que pode ser um sinal de negligência.
-
Comportamento extremamente tímido, ou extremamente agressivo: Se o cachorro parece excessivamente tímido, medroso ou agressivo quando se aproxima de pessoas ou outros animais, isso pode indicar abuso ou falta de socialização.
-
Exposição prolongada a condições climáticas extremas: Se o cachorro é mantido ao ar livre em condições climáticas extremas sem acesso a abrigo adequado, água e proteção contra o frio ou calor excessivo.
-
Sons de choro, latidos ou uivos constantes: Choros, latidos ou uivos constantes podem ser um sinal de que o cachorro está em sofrimento ou angústia.
-
Isolamento prolongado: Se o cachorro é mantido em isolamento prolongado, sem interação social com humanos ou outros animais, isso pode indicar negligência.
-
Falta de acesso a água limpa e fresca: A ausência de água limpa e fresca disponível para o cachorro pode indicar negligência nas necessidades básicas.
-
Uso de correntes ou amarras excessivamente curtas: Amarrar um cachorro de forma que ele não tenha espaço para se mover adequadamente pode causar sofrimento físico e emocional.
-
Comportamento aparentemente agressivo dos proprietários: Se os proprietários parecem agressivos ou violentos com o cachorro, gritam com frequência ou demonstram raiva extrema em relação ao animal.
Em todos estes casos, o animal não tem “culpa”; ele é tão vítima das circunstâncias quanto você.
2. Já o vizinho…
O animal não tem culpa pelos latidos – mas o vizinho pode ter.
Afinal, quem assume a responsabilidade pela criação de um animal, assume também a responsabilidade de saber tratá-lo adequadamente. Entender os problemas do animal, levá-lo a veterinário com a frequência adequada, dar-lhe atenção, garantir-lhe um ambiente saudável, tudo isso contribui para dar qualidade de vida ao animal e evitar que ele reclame. Sim, os latidos excessivos podem ser uma reclamação, já pensou nisso?
Mesmo um dono inexperiente pode encontrar hoje muitas formas de aconselhamento, seja por meio das muitas ONGs de proteção e acolhimento a animais, seja por meio da abundante informação disponível na internet. A negligência com animais, hoje, é injustificável. Não se explica, não se justifica, e não tira a responsabilidade de ninguém – e é de responsabilidade que falaremos a seguir.
3. …deve ser chamado à responsabilidade
Se os latidos acontecem durante o dia, o dono comete contravenção penal ao não adestrar o animal: “perturbar o trabalho ou o sossego alheio provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem guarda” (artigo 42, inciso IV do Decreto-Lei 3.688/1941 -- Lei das Contravencoes Penais).
Se os latidos acontecem durante a noite, além da contravenção penal, pode haver violação a leis de silêncio ou de controle da polução sonora. Pesquise a legislação de sua cidade sobre estes dois temas, e é provável encontrar algo sobre ruídos causados por animais. Veja-se o caso de Salvador: é violação do artigo 12 da Lei Municipal 5.354/1998 (Lei do Silêncio): “Não serão permitidos sons provocados por criação, tratamento, alojamento e comercio de animais que causem incômodo para a vizinhança, salvo quando em zoológicos, parques e circos”.
Latidos constantes podem ser indício de maus tratos, que, como visto, são crime ambiental tipificado no art. 32 da Lei 9.605/1998. Como contravenções penais e crimes ambientais são, por si só, atos ilícitos, o dano que causam pode justificar indenização por danos materiais e morais, a depender dos detalhes do caso.
Além disso, se ficar muito bem provado o incômodo causado pelos ruídos do animal, é possível pedir a um juiz que condene o vizinho a indenizar pelos danos ao sossego e, eventualmente, à saúde física e psíquica. Essa é a chamada “violação dos três S” (saúde, segurança, sossego), base de qualquer direito de vizinhança, sobre os quais falamos mais extensamente em outro artigo .
4. Mas como resolvo isso? Tem como resolver amigavelmente?
Como você vê, a lei está do seu lado. Só é necessário saber usá-la. Agora, vamos ao passo a passo.
Primeiro, pesquise o texto integral da legislação acima – a internet já te dá tudo de bandeja, aproveite! – e imprima-a. Leia-a, e deixe-a guardada.
Depois, cada vez que o latido começar grave um vídeo no celular com alguma prova da data e horário da gravação (por exemplo: televisão, relógio de parede, jornal com data etc.). Faça isso por uma semana.
Nos dias em que gravar, converse com outros vizinhos para saber se também se sentem incomodados. O apoio deles será fundamental, pois, como indicamos em nosso artigo sobre os 'três S' da vizinhança, é preciso provar que o incômodo afeta também aos vizinhos para aumentar suas chances de sucesso em qualquer medida que venha a adotar. Se não quiser que todos abordem juntos o dono do cachorro, peça aos outros vizinhos para o contatarem individualmente.
Caso os latidos continuem por uma semana, junte-se a pelo menos dois outros vizinhos e tente conversar com o dono do cachorro. Às vezes ele também se incomoda, mas não sabe o que fazer. Tente ser cordial, não use nenhuma “ameaça” legal por enquanto. Um exemplo de como iniciar a conversa: “Eu acho que você gostaria de saber que seu cachorro está latindo muito alto de noite e que isso me atrapalha porque meu quarto fica perto de onde ele fica”. Explique como estes latidos prejudicam seu sono e sua concentração, entre outras coisas, e que gostaria de encontrar uma boa solução. Sugira inclusive o uso de apitos ultrassônicos para adestramento.
5. E se o vizinho não quiser resolver o problema?
Se a conversa não for amistosa, como o diálogo foi presenciado por duas testemunhas conhecidas haverá quem possa relatar o que quer que ocorra. Hora de resolver a questão chamando autoridades.
5.1. Notificação extrajudicial
Primeiro: faça uma notificação extrajudicial ao dono do cachorro junto com seus vizinhos. A notificação extrajudicial funciona como um ultimato, dando ao vizinho um número de dias para resolver a questão. Como dissemos num artigo mais longo que ensina como escrever uma notificação extrajudicial , ela pode ser encaminhada por meio de carta com aviso de recebimento, da qual você guardará uma cópia para usar em medidas futuras. Também pode ser encaminhada por meio de um cartório de títulos e documentos, nos casos em que provas mais robustas sejam necessárias. E-mails ou mensagens diretas em redes sociais não servem como notificação.
Para preparar a notificação enviada por correio, pode-se usar o modelo ao final deste artigo (item 7). Basta copiar e colar o texto do modelo no editor de sua preferência (Word, LibreOffice, etc.), mudar os campos indicados entre parênteses de acordo com as instruções do próprio modelo, ajustar o que mais considerar necessário, imprimir, assinar (não é necessário reconhecer firma), enviar pelos Correios com aviso de recebimento, e aguardar o retorno do aviso.
Se preferir saber mais sobre o que é e como funciona uma notificação extrajudicial, leia nosso artigo que ensina como escrever uma notificação extrajudicial e use-o para adaptar o modelo à sua situação, ou para redigir uma notificação por conta própria.
Se o prazo passar e o vizinho não cuidar para que o cachorro pare de latir, você pode fazer várias coisas simultaneamente.
5.2. Centro de Controle de Zoonoses
Primeiro, se sua cidade tiver um centro de controle de zoonoses (CCZ) e você tiver fortes indícios para suspeitar que o cachorro é vítima de maus tratos, uma ligação para o CCZ pode ser suficiente para resolver a situação.
Já vimos alguns indícios acima, mas você pode suspeitar dos maus tratos por outros indícios observados aí onde você está, e que não tenham sido listados acima.
Se os funcionários do CCZ identificarem maus tratos, podem até levar o animal embora. Caso o CCZ dê algum documento ou número de protocolo da reclamação, guarde-o como prova para medidas futuras.
5.3. Denúncia aos órgãos de controle de poluição sonora
Depois, se na sua cidade houver algum órgão de controle da poluição sonora, entre em contato com este órgão para pedir que tomem providências quanto à situação.
Caso este órgão dê algum documento ou número de protocolo da reclamação, guarde-o como prova para medidas futuras.
5.4. Levando o caso a uma delegacia
Existindo ou não estes órgãos em sua cidade, a medida mais certa é levar a notificação extrajudicial à delegacia mais próxima junto com seus vizinhos.
Leve a legislação que você já imprimiu (pode haver escrivãos ou agentes que digam que “isso não é crime”, que “polícia não se mete em briga de vizinho” etc.), leve os vídeos, explique bem o caso, e registre um Boletim de Ocorrência (BO).
Pode ser que a polícia não tome nenhuma atitude, mas o BO registrado serve como prova para medidas futuras.
5.5. Ministério Pùblico
Por último, leve o caso ao Ministério Público (MP) por meio de uma representação escrita usando as mesmas técnicas da notificação extrajudicial .
Junte todas as provas produzidas até aqui: o BO, os protocolos no órgão de controle da poluição sonora, cópia dos vídeos, declaração por escrito dos vizinhos incomodados… conte toda a história em papel, dê detalhes da situação, e encaminhe tudo ao MP, que também é responsável pelo controle da poluição sonora e pela proteção aos animais.
5.6. Processo de indenização por danos morais e materiais em juizado cível
Com esta quantidade de providências já tomadas – BO em delegacia, protocolos de reclamações nos órgãos de controle da poluição sonora e CCZ, representação ao MP, vídeos gravados em mídia (pendrive ou DVD), a própria notificação extrajudicial etc. – procure um advogado, explique o caso e peça para que abra um processo pedindo ao juiz que ordene ao vizinho tomar providências para lidar com o latido do cachorro, e pedindo indenização por danos morais e (a depender do caso) danos materiais.
Se nada é capaz de fazer o vizinho lidar com os latidos do cachorro, talvez apertar-lhe o bolso seja a única medida eficaz.
5.7. Exclusão do condômino antissocial
Moradores de prédios de apartamentos, de conjuntos habitacionais ou de Condom%C3%ADnios horizontais têm à sua disposição um meio extremo para resolver a situação: a exclusão do condômino antissocial, procedimento extremamente grave estabelecido pelo Enunciado 508 na V Jornada de Direito Civil, do Centro de Estudos Judiciários do Superior Tribunal de Justiça (CEJ-STJ):
Verificando-se que a sanção pecuniária mostrou-se ineficaz, a garantia fundamental da função social da propriedade (arts. 5º, XXIII, da CRFB e 1.228, § 1º, do CC) e a vedação ao abuso do direito (arts. 187 e 1.228, § 2º, do CC) justificam a exclusão do condômino antissocial, desde que a ulterior assembleia prevista na parte final do parágrafo único do art. 1.337 do Código Civil delibere a propositura de ação judicial com esse fim, asseguradas todas as garantias inerentes ao devido processo legal.
Não vamos entrar em detalhes de um procedimento tão complexo e grave para não fugir muito do assunto, ainda mais quando já escrevemos um artigo bastante completo sobre o assunto , que explica a validade jurídica da medida e explica o passo-a-passo do procedimento.
Basta dizer, em resumo, algumas etapas, recomendando fortemente a leitura de nosso artigo para não cometer nenhuma ilegalidade:
- Esgotamento das medidas amigáveis: o vizinho já foi abordado pelo síndico e vizinho para resolver a situação amigavelmente, sem sucesso.
- Registros de ocorrência: as ocorrências de latidos vêm sendo registradas no livro de ocorrências do condomínio.
- Notificações extrajudiciais e judiciais: outros condôminos, e a própria administração do condomínio, já tentaram resolver a situação por meio de notificação extrajudicial ou de notificação judicial, sem sucesso.
- Multas por infração à convenção ou regimento interno: o vizinho já foi multado pelo menos uma vez, e a situação continua.
- Multa contra condômino antissocial: assembleia do condomínio já aprovou a aplicação contra o vizinho de multa contra condômino antissocial, correspondente a até dez vezes o valor da multa simples, e a situação prossegue.
- Ocorrências policiais: o caso já foi levado à polícia pelo menos uma vez, e existe boletim de ocorrência ou termo circunstanciado registrando que a polícia está ciente do assunto.
- Nova assembleia decide pela exclusão: tendo passado por tudo isso, nova assembleia do condomínio decide punir o vizinho com a proibição de sua entrada no condomínio, e autoriza a administração do condomínio a solicitar esta proibição na Justiça.
- Judiciário confirma decisão a assembleia: levado o caso ao Judiciário, o vizinho foi condenado por sentença transitada em julgado a não mais entrar no condomínio, estando proibido de entrar no prédio, no conjunto habitacional ou no condomínio horizontal.
Não custa insistir numa constatação óbvia: esta é uma medida muito extrema e grave, além de envolver forte engajamento emocional e psicológico, consumir bastante tempo, exigir intensa mobilização dos vizinhos e resultar numa restrição fortíssima contra o direito de propriedade do condômino dono do cachorro – que continua sendo dono do imóvel e pode vendê-lo, alugá-lo, emprestá-lo, etc., mas não pode mais entrar nele.
Não é demais advertir: só se deve recorrer a esta medida extrema quando nada mais houver funcionado.
6. Concluindo…
Se você já estava pensando em fazer alguma maldade com o cachorro, pode mudar de ideia.
O animal não tem culpa nenhuma, e existem vários meios legais para forçar o vizinho a tomar alguma atitude se ele se negar a cuidar do caso de forma amigável.
O caminho é trabalhoso, mas você deve pensar: o que é mais importante, minha inércia ou meu sossego?
7. Modelo da notificação extrajudicial
(Para instruções mais completas sobre como escrever uma notificação extrajudicial, leia o artigo mais longo que escrevemos sobre o tema .)
(Nome da pessoa que assina), (número do RG da pessoa que assina), (número do CPF da pessoa que assina), residente e domiciliado na (endereço completo com CEP da pessoa que assina), com apoio no artigo 42, inciso IV do Decreto-Lei 3.688/1941 (Lei de Contravencoes Penais) e no artigo 32 da Lei 9.604/1996 (Lei dos Crimes Ambientais); notifica os moradores do imóvel situado na (endereço completo com CEP do imóvel onde está o cachorro), em especial o(a) sr(a). (nome, completo se possível, do dono do cachorro), de que os latidos constantes de seu cachorro estão perturbando meu trabalho e meu sossego, e também os da vizinhança. Além disso, entendemos que os latidos constantes podem ser indício de eventuais maus tratos contra o animal, situação que precisa ser investigada.
Foram feitas tentativas de diálogo com o morador (nome, completo se possível, do dono do cachorro) no dia (colocar dia e hora dos contatos ou das tentativas de contato com o dono do cachorro). Tal esforço não deu resultado, pois o cachorro continua latindo sem que tenha sido tomada qualquer medida eficaz.
A situação já não é mais tolerável. Ficam os moradores deste imóvel, portanto, e em especial o(a) sr(a) (nome, completo se possível, do dono do cachorro), notificados para tomar providências para fazer cessar os latidos constantes do cachorro no prazo de até 30 (trinta) dias a contar do recebimento desta notificação.
(Cidade), (data).
(Assinatura)